22 abril 2005

Vivre sa vie

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Em Vivre sa vie, Godard filma, acima de tudo, e em (quase) todos os seus filmes, o próprio cinema - é aqui que se encontra a sua superioridade artística em relação a tantos outros, uma marca presente em cada plano que vemos da sua obra. Esta será talvez uma das formas mais representativas da modernidade, não só pela consciência de uma independência artística do cinema, estabelecido historicamente e intelectualmente como arte que é, mas pelo aproveitamento dessa própria ideia, e enriquecendo-a através da sua necessária desconstrução. Assim se apresenta a "originalidade" e a nova riqueza do realizador francês, já sublinhada de tantas outras maneiras.
A sequência genial de apresentação do rosto de Anna Karina é emblemática dessa ideia. Somos confrontados não com um rosto, mas com o rosto, o do cinema de Karina. A série de planos tanto vale pelo filme inteiro, pois resume-o idealmente a uma imagem, como por tudo o que representa qualitativamente. É um dos momentos em que o espectador vê-se "obrigado" a gerir o choque com o que surge indefinidamente na tela, e que lhe diz directamente respeito. Pois o cinema de Godard é, apesar de tudo, bem directo.

A prisão do rosto de Karina ao cinema (e o suposto local em que tal momento surge na acção não é obviamente inocente), é ainda acentuado da forma mais bela e por uma das melhores homenagens possíveis, pois o cinema de Godard transpira, também, homenagem. As lágrimas de Falconetti, as de Dreyer, são também as do cinema, as de Karina (mais um vez, o local, a sala de cinema). Como se todo o cinema se concretizasse nesta segunda cena, tanto na tela, como para nós, assim alcançando-se a eternidade.
Prisão e cinema - dois termos inevitavelmente fortes, mas obrigatoriamente ligados. Somos talvez eternos no nosso cinema, mas não necessariamente livres. Esta é a marca da nossa vida, vivendo pelo o que ela é. Vivre sa vie.

21 abril 2005

Mais uma sugestão INDIE

Os frequentadores do primeiro INDIE LISBOA lembram-se certamente de que havia três longas-metragens nacionais à escolha dos espectadores: o badalado A Cara que Mereces, o documentário Lisboetas e o perturbador Noite Escura.
Este ano, a organização do festival pregou-nos a partida de exibir uma única longa-metragem portuguesa. De seu título Adriana, esta película pode ser considerada uma agulha num palheiro cinéfilo constituído por longas-metragens oriundas de países como a Rússia, o Peru, a Polónia, a Coreia do Sul e até Hong Kong.
Perante isto, aguardo pela vossa presença nas instalações do Fórum Lisboa, dia 25 de Abril, às 21h30m.

(Para aqueles que estão na dúvida, aqui fica um pequeno resumo do argumento de Adriana)
Numa ilha imaginária nos Açores, uma comunidade fecha-se em torno do seu senhor, Edmundo, um aristocrata rural, que acabou de perder a mulher na sequência do nascimento da sua filha. Atravessado pelo desgosto, Edmundo declara o luto e proíbe qualquer forma de contacto sexual entre os habitantes. É neste ambiente que Adriana, a filha de Edmundo, cresce, ela que é uma das últimas crianças a nascer nesta ilha. Anos mais tarde, quando a desertificação da ilha se agudiza, Edmundo é levado a tomar uma decisão drástica: enviar a sua filha para Lisboa, para que ela "possa constituir família por métodos naturais". E é assim que, para Adriana, começa a saga na grande cidade.
ADRIANA é a quarta longa-metragem de Margarida Gil, uma obra que se distingue pelo apuro dos diálogos escritos a meias com Maria Velho da Costa, mas também pela deslumbrante fotografia de Rui Poças e as interpretações de Ana Moreira e Isabel Ruth.

20 abril 2005

Falta apenas um dia!




À semelhança do que aconteceu em Setembro e Outubro do ano passado, Lisboa prepara-se para receber o Segundo Festival Internacional de Cinema Independente, mais conhecido como INDIE LISBOA 2005.
Os cartazes e os programas do festival encontram-se espalhados por toda a Lisboa e permitem verificar que a organização não descurou a importância de haver uma panóplia de películas variadas à disposição dos espectadores. No meio de tanta escolha, devo revelar que fiquei impaciente com a perspectiva de assistir ao novo filme de Lukas Moodysson. Para quem sentir o mesmo, não o perca nos dias 22 e 29 de Abril, nas salas do cinema King. Deixo-vos um pequeno texto sobre esta película e espero que nos encontremos aqui para a discutir.

Lukas Moodysson tem na transgressão o seu terreno de eleição. É assim desde a sua primeira longa-metragem “Fucking Amal” e volta a sê-lo neste A HOLE IN MY HEART, o quarto filme na sua carreira. Rodado em enorme segredo num duvidoso apartamento suburbano, Moodysson centra-se em Rickard e no seu filho Eric, que passa a maior parte dos dias fechado no quarto, presumivelmente numa tentativa de se desligar do que se passa no resto da casa. O seu pai, um pornógrafo amador, está a filmar a sua mais recente obra com um amigo, Geko, e uma rapariga chamada Tess. Chocante e perturbante, A HOLE IN MY HEART é, inegavelmente, um desafio e uma experiência quase insuportável.

Vemo-nos por lá!

19 abril 2005

Uma crítica

Depois de tanta polémica à volta do filme português A Cara que Mereces, e devido a tudo o que já foi escrito sobre ele, sinto a necessidade de escrever neste blog, e segundo a minha perspectiva, pela primeira vez, uma "crítica", se quiserem, ou o que se pode chamar um texto pessoal, sobre a própria obra e toda a discussão que se gerou à volta dela.
Seguindo a linha de raciocínio de certos críticos (nacionais) de vários diários ou suplementos, trata-se de uma obra sem nexo, sentido, razão de ser, presunçosa, restrita a um imaginário exclusivo de um pequeno grupo de amigos, directamente representado no próprio filme.
E começo desde já por discordar. Pouco interessa ao cinema se um filme é feito ou não por um certo número de pessoas que se conhecem todas entre elas há já muito ou pouco tempo. Muitas das vezes que tal acontece nunca se traduz em maus filmes, o mesmo se defende em relação a filmes cujo complexo imaginário se "restringe" à cabeça do realizador. Contra estes pressupostos, nunca teriam existido filmes de Godard, Fellini, Truffaut, ou Woody Allen, entre muitos outros. A Bout de Souffle deve ter sido feito por uma dezena de pessoas, todas amigas, e todas vindas do mesmo grupo intelectual, o dos "Cahiers" (revista que começou por destacar este mesmo filme português). Otto e Mezzo foi, por muito que o seu realizador negasse, uma das obras mais pessoais da história do cinema.
A Cara que Mereces, sem ser uma obra-prima, como estas últimas mencionadas, não deixa de ser um verdadeiro atrevimento ao "estado de crise" do cinema português, tanto discutido, e tanto atacado por todos os lados. Culpam-se artistas, culpam-se ideologias, "esquece-se" o público. No entanto, não se sai das radicalizações dos dois lados do debate - por um lado, pede-se o fim de um cinema de combate pós-25 de Abril, "marginal" e "cínico", como se defende o regresso "total" do cinema ao espectador, já tanto esquecido pelos artistas. Assim se chega ao ridículo já público do novo júri do ICAM, cujas famosas opiniões vão contra qualquer espécie de ideia de cinema, ou de tudo o que ele deveria ser.
Nesta defesa de construção de uma "indústria" cinematográfica, ou de um cinema comercial de marca nacional, chegamos à crítica ao tal cinema "artístico" português, que uns defendem podre, afastado da realidade, ou então merecedor de uma profunda reflexão sobre o seu propósito e modo de "funcionamento". Esquecem-se todos que o cinema é já em si "artístico". O facto de filmar o quer que seja, e colocá-lo num movimento ilusório, por uma projecção, numa sala de cinema, com muitos ou poucos espectadores, provoca imediatamente em si um valor artístico inegável. O espectador, não sendo estúpido, rapidamente se apercebe do seu valor artístico, ou da sua eventual inexistência - por vezes correctamente, outras erradamente. Mas cada um tem o seu cinema (ou não o tem).
No fundo, pouco importa toda esta discussão centrar-se à volta de um só filme, tal como já aconteceu tantas vezes, chega até a ser ridículo. Creio que um dos grandes defeitos que nós temos (e julgo ser demasiado fácil afirmar que é por sermos portugueses), é precisamente a constante necessidade de deitar abaixo tudo o que acaba por parecer algo estranho, "despropositado", "insultuoso", ou apenas incompreensível. A Cara que Mereces pouco tem disso - como escreveu Kathleen Gomes, "é só preciso ter tido infância". É esta a grande sensação com que fico do filme, aliás, todo ele parece estruturado à volta da sua ideia, até ao seu fim ("adeus amigos"). Toda a sua simbologia me parece familiar, e em nada exclusiva a sete ou oito pessoas.
Não defendendo que o filme seja perfeito, parece-me mesmo assim que surge, no cinema português, como portador de uma originalidade muito pouco vista neste nosso pequeno "circuito" nacional. Para além da beleza da sua filmagem, e de qualquer outro pormenor técnico (com destaque para a sua fotografia), a sua estrutura surge muito bem conseguida com tudo o que ela parece conter (e que é muito, mesmo parecendo simples - aliás, as crianças "parecem" sempre criaturas simples). Acredito que certas extensões mais "escusadas" (numa linguagem mais directa) são fruto do facto de se tratar de uma primeira obra, mas sem dúvida interessante, bastante rica, e dotada de uma originalidade muito própria, algo que já faltava ao nosso cinema. Espero por futuras obras de Miguel Gomes e pela exploração do seu universo fílmico, possivelmente partindo da mesma doce originalidade, factor principal que me prendeu ao filme e ao seu equilíbrio certo de ironia e "tragédia". Por aniversários, tesouros escondidos, histórias de piratas, quartos escuros (tanto mistério que se reúne aqui, e quando este acaba, também é assim para a infância, tanto no filme, como na vida), ou outros gags. Até lá, que se façam mais filmes, que é do que precisamos.

17 abril 2005

Annie Hall

A neurose da cena inicial. O fundo bege escuro, pano de uma confissão humorística, de histórias inventadas, de desvios emocionais. Um suspiro. "Annie and I broke up".
A infância, as corridas de carrinhos de choque, as idas ao médico. "The universe is not expanding!". A turma da primária, os tios dos tios chatos, a montanha-russa, o imaginário infinito em criança, as primeiras personagens fantásticas, os professores.
Fast forward. Annie Hall, face to face, o poster de Bergman, a discussão, porque existimos em conflito. Os passeios, as fotografias, a música. "Seems like old times, having you to walk with...". Um banco de um jardim, o gozo, o carro, Nova Iorque, a conversa numa varanda. "I really like what you're wearing". "Yeah, it was a gift from Grammie Hall"."Grammie Hall? What did you do, grow up in a Norman Rockwell painting?". O charme, os livros, o vinho, o riso nervoso, as conversas ("I wonder what she looks like naked").
O cais, o rio, o chapéu, a confissão. "Love is too weak a word for what I feel, I lurve you, you know, I loave you, I luff you, two F's". Um abraço, um beijo.
Se apenas as coisas fossem assim. E chegam os jogos mentais, a neurose, as insistências, as perguntas, o desmontar de toda uma relação, de qualquer relação entre nós e o mundo, nós e o outro. A análise, a insatisfação, a desconstrução, o pensar egocêntrico. De novo o cais, na solidão, sem ponte, num plano geral, a ausência. "Alvy, you're incapable of enjoying life, you know that? I mean you're like New York City. You're just this person. You're like this island unto yourself".
Mas todos precisamos "dos ovos". A vida tanto é doce, como amarga. Tanto cumplicidade como rejeição. Mas ainda ninguém percebeu porquê. Apenas é. "A relationship, I think, is like a shark. You know? It has to constantly move forward or it dies. And I think what we got on our hands is a dead shark".
A cena final. O que restam são as memórias, o que ficam são as marcas. Assim vêmo-las partir, tal como Alvy Singer vê partir Annie Hall, e percebe que nunca precisou tanto dela(s). Mas a vida está sempre presente, dela não fugimos. "Still a thrill that it was the day I found you".
"Seems like old times, here with you".

12 abril 2005

Chegou a vez de elogiar um crítico



Numa altura em que um filme como A Cara que Mereces de Miguel Gomes recebe elogios fervorosos por parte da crítica nacional e internacional, eis que Mário Jorge Torres, colaborador do Y, ousa erguer a voz e dar a pontuação mínima a esta patetice sem tom nem som.
Confesso que andava realmente preocupada. Recordo-me de ter lido, no Expresso de 9 de Outubro, o artigo “Caça aos gambozinos” de Francisco Ferreira. Nesse texto, liam-se frases prodigiosas como faz todo o sentido que o filme, num gesto que agradaria a Buñuel, deixe cair a personagem porque os anões “são” Francisco e A Cara que Mereces, na sua doçura contagiante, é um filme sombrio. Quanto a mim, se me permitem a opinião, quer-me cá parecer que Buñuel pagaria para não ter de aturar tal fastio. E, já agora, qual “doçura contagiante”? Estará Francisco Ferreira a fazer alusão à cansativa abundância de pseudo-simbolismos? Ou estará a referir-se à mediocridade dos actores? Ou será que se esqueceu de que a dicção de todos os participantes é lamentável?
Agora que li a opinião de Mário Jorge Torres já me sinto mais descansada. Ainda bem que, apesar dos prémios e congratulações que esta película recebeu, há cabeças pensantes e destemidas no universo da crítica cinematográfica que se faz em Portugal.

11 abril 2005

Come out whatever you are...



A primeira vez que vi Dakota Fanning foi em I Am Sam a contracenar com Sean Penn e Michelle Pfeiffer. Nessa altura, não pude deixar de a comparar com Drew Barrymore. A mesma cara irresistível, a mesma cor de cabelo e os mesmos olhos doces.
Agora que a revi em Hide and Seek, apercebi-me de que esta criança já ultrapassou as semelhanças com a menina do ET. Se reflectirmos sobre o filme, constatamos que este não explora de forma consistente o tema do amigo imaginário e que não traz novidades ao mundo do terror. No entanto, Hide and Seek possui duas mais-valias poderosas: a voz arrepiante e o olhar perturbador de Dakota Fanning. Apesar dos 11 anos, não estamos na presença de uma actriz promissora mas sim de uma grande actriz.
Apetece-nos prever que quem já trabalha assim, só poderá ter uma carreira de sucesso ao longo da vida. Todavia, convém que nos lembremos de nomes como Macaulay Culkin e que nos limitemos a aguardar.

08 abril 2005

O Beijo do Cinema



Em The Quiet Man de John Ford, talvez o seu filme mais erótico (e por vezes deliciosamente perverso), onde a história de amor, sempre presente nos seus filmes, parece passar para primeiro plano, John Wayne e Maureen O'Hara reúnem-se para um dos momentos mais belos do Cinema, o do seu primeiro beijo, entre os dois, e o da nossa ilusão. Wayne berra e quebra a janela atirando uma pedra, as que ele diz estarem enterradas em cada sítio da Irlanda, mas isso não parece chegar para a primeira explosão deste filme, que nos introduz verdadeiramente em toda a sua força e agitação. O'Hara corre, mas Wayne, tal como força da natureza que é, trá-la de volta, não a deixando escapar por um só momento (porque a "miragem", tal como a do nosso cinema, é bem real), confundindo-se com o próprio vento que os parece unir, mais do que separar. Aqui eles exprimem tudo o que sentem um pelo outro, quase sem o ter feito por palavras - tudo o que o cinema deveria ser. Aqui, este é sentimento numa das suas formas mais intensas, e Ford captura-o como ninguém, num enquadramento perfeitamente característico do seu génio. E somos assim arrastados até ao final da sua excelente obra, envoltos em toda a riqueza física dos seus planos, e do seu conteúdo. "O mais belo beijo da história do cinema", escreve Bénard da Costa, explosão de desejo e momento de verdade. Se apenas todos os filmes tivessem um momento assim.

03 abril 2005

Uma escolha diabólica

Durante muito tempo, perguntei a mim mesma a que se deveria a aura de respeito e reconhecimento que envolve a carreira de Mia Farrow. Já a tinha visto em filmes como Hannah and Her Sisters, New York Stories e Crimes and Misdemeanors e as suas prestações tinham-me passado quase despercebidas. Porém, dez anos depois de ter lido o romance de Ira Levin, consegui ver o filme por que aguardava há tanto tempo: Rosemary's Baby.
Lá estão Mia Farrow e, surpresa das surpresas, John Cassavetes de quem só me lembrava dos seus próprios filmes. A dupla funciona de forma perfeita: a beleza quase etérea da mulher a contrastar com o cinismo repulsivo do marido. Mia Farrow está irreconhecível, a voz açucarada que tanto me irritara ganha novos contornos e, pela primeira vez, consegui perceber a que se deve a admiração pela sua carreira.
Voltando ao filme, devo avisar que as várias surpresas do argumento ficam reduzidas a pouco graças à tradução inadmissível do título Rosemary´s Baby para A Semente do Diabo. Ainda assim, preparem-se para um dos melhores trabalhos de realização da carreira de Roman Polanski, sem comparação com o excessivo The Pianist que, por enquanto, é a sua última película.

01 abril 2005

Poemas transformados em filme

“Oh! Ver não posso êste labéu maldito!
Quando dos livres ouvirei o grito?
Sim... talvez amanhã.
Galopa, meu cavalo, serra acima,
Arranca-me a êste solo. Eia! Te anima
Aos bafos da manhã.”
Castro Alves
Antônio de Castro Alves deixou-nos escritos cuja variedade temática é impressionante: poemas patrióticos, amorosos, apoiantes do negro e do escravo, de louvor à mulher, defensores dos grandes ideais, protectores da natureza e reconhecedores do talento de certos actores de teatro.
Conhecido por muitos como “o poeta dos escravos”, deixava discorrer nos versos que compunha um nítido compromisso entre o poeta e o povo, ou seja, uma obrigação de denunciar as humilhações, torturas e desgraças a que os indefesos estavam expostos. Ligado a um sentimento profundamente socialista e utópico, herança do escritor francês Victor Hugo, defendia as grandes causas e pregava reformas universais. Ao lermos os seus versos, constatamos que toda a sua obra respira um genuíno optimismo. Contudo, quando nos dedicamos a estudar a sua biografia, é complicado para nós, enquanto seus leitores, perceber de onde lhe vinha tal disposição para confiar no melhor lado das coisas. Tendo vivido apenas 24 anos, pode dizer-se que teve uma existência bastante intensa.
Nascido na Bahia, numa família ilustre e culta, assistiu muito cedo à morte de sua mãe. São suas as palavras “Traduzi em verso a saudade de minha mãe”. A relação apaixonada e conturbada, que teve com a actriz de teatro portuguesa Eugénia Câmara, marcou toda a sua obra e foi uma afronta à sociedade conservadora de então. Eugénia foi uma grande fonte de inspiração para o autor e um marco incontornável na sua vida. Ao afastar-se da actriz, Castro Alves não voltou a recuperar o equilíbrio e alegria de outrora. Algum tempo mais tarde, sofreu um acidente de caça e, sem outra solução, amputou o pé. A par disto, não nos podemos esquecer da tuberculose que o acompanhou durante muitos anos e que o acabou por matar em 1871.
E eis que chegamos a 1999, ano em que Sílvio Tendler deu a conhecer a sua película Castro Alves - Retrato Falado do Poeta. Para aqueles que leram as últimas linhas e ficaram impressionados com a vida do escritor, recomendo vivamente este filme. Além de cumprir a função biográfica de forma precisa, esta obra fílmica remete-nos para o universo penoso de uma alma doente que conseguiu alimentar o seu optimismo e deixar-nos um dos melhores espólios literários da poesia escrita em português.

29 março 2005

Os Verdes Anos

Todo um cinema junta-se aqui - o do Novo Cinema Português e os seus nomes (Paulo Rocha, realizador de Os Verdes Anos, Fernando Lopes, António de Macedo), o Restaurante Vá-Vá, a praça de Alvalade e a Avenida de Roma, e sobretudo, uma Lisboa que parece respirar uma mudança, uma realidade que escapava ao ambiente social de certas alturas, as dos oitavos andares, ou que choca no fundo do poço, agitado pela pedra que cai em profundidade. Trata-se da queda presente nesta obra, a de todas as escadas, das vistas (o elevador de Santa Justa), das colinas de Lisboa, da claustrofobia da personagem principal, a (sua) visão fixa e subterrânea da sua oficina.
Também se trata de uma nova realidade cinematográfica do nosso país, uma nova arquitectura (presente(s) em cada um dos planos deste filme), a da matéria cinematográfica sobre a mera história. M.S. Fonseca afirma que estas são personagens sem psicologia - arrisco a lembrar-me de Cézanne, e também da sua arquitectura modernista.
E a presença de Paulo Rocha e o emocionante aplauso de todo um público na sessão de hoje na Cinemateca Portuguesa, grupo e figuras máximas de toda uma humanidade criativa e imaginária, não mais representa, para todos nós, que o concretizar de todo um Cinema. Aqui nos apercebemos, observando o cineasta e toda a sua (e nossa) emoção, do choque mais verdadeiro de todos - o do (nosso) Cinema com a vida real e presente. Por estes momentos não esperamos, por todo um transbordar da nossa realidade mais pura e íntima, sob o reconhecimento real da nossa existência, enquanto seres, enquanto pessoas, enquanto figuras frágeis que somos, cercadas num Universo demais misterioso para a nossa racionalidade. Por estes momentos, surge toda uma vida, vemos que toda a fragilidade e insegurança de um pensamento, de uma visão, ou de uma obra é afinal onde se concentra toda a sua beleza, e de onde parte toda a sua força. Por estas obras, por estas sessões, enriquece-se o nosso Cinema. E mais não nos resta senão aplaudir, sentir, ou chorar. Assim vivemos.

28 março 2005

Efeitos eloquentes do vinho


Envelhecer, chegar a meio da vida e sentir que não se construiu nada a que nos possamos agarrar. Olhar para os outros, não nos identificarmos com aquele que sempre foi o nosso companheiro, o nosso melhor amigo. Refugiarmo-nos numa paixão que nos acalenta e nos transporta para um mundo de tonturas e de ressacas. Depositarmos as nossas esperanças num projecto literário que todos recusam. Constatarmos que o grande amor da nossa vida já pertence a outra pessoa.
Sideways é sobre tudo isto: sobre a vida autêntica, aquela que encaramos diariamente e à qual tentamos fazer frente com alguma ironia. About Schmidt já nos tinha mostrado muito disto e isso prova que Alexander Payne sabe filmar a vida e sabe escolher protagonistas: Jack Nicholson numa primeira instância e agora Paul Giamatti. (Já o tínhamos visto recentemente em American Splendor num registo ainda mais depressivo.)
Pensemos em Sideways como um filme de pessoas simples, até banais, que encerram em si mesmas a habilidade de sobreviverem - seja a fazer um estudo sobre vinhos, a planear um casamento conveniente, a falhar tacadas de golfe, a alinhar em esquemas sexuais ou simplesmente a olhar para uma paisagem.

24 março 2005

The Misfit

Marilyn Monroe, Marilyn e a Morte, M e M. De Mistério, de Miséria, de Mulher, de Mãe, de Magia, de Mínima, M de Misfit. No seu último filme, de John Huston, o último também do seu "Pai", Clark Gable, esta surge transformada, e como em nenhum outro filme, a fazer o papel de si própria, num conto escrito pelo seu Marido - M de Miller, Arthur.
E de todas as Marilyns, porquê em The Misfits ? Por que apercebemo-nos do que já tinha acontecido ao ver todos os seus outros filmes. Ver Marilyn Monroe na tela das imagens é interiorizar toda a sua História, a sua presença, mas sobretudo a sua ausência, a sua beleza, mas toda a sua tragédia, a Vida, mas igualmente a sua Morte, a do Mistério, de MM, o que fascina os novos espectadores, os que ainda pensam nela, os poetas que ela criou, os realizadores que se apaixonaram, os mitos que ela gerou, as histórias que se imaginaram.
Quem lhes dera, a eles todos, e a todos nós, que o seu Fim se encontrasse como o desta obra, óptimo filme de Huston, desenhado para a Pessoa de Marilyn, no caminho da estrela que a guia para Casa - não "like a home", a de Gable, Clift, e ela própria, mas um sítio que talvez nunca existiu, nem nunca poderia existir para ela.
"What makes you so sad? You're the saddest girl I ever met". As "respostas" surgem ao longo da fita, dadas pelo homem que a conheceu, que viveu com ela, mas que, como ele próprio sugere, acaba por abandoná-la, como tudo na vida.
"We're all dying aren't we. We're not teaching each other what we really know, are we?". Talvez não, talvez nunca, mas de si, a muito devemos o nosso cinema. No fundo, cada um com o seu, e cada um à procura dele, não o vivemos de forma muito diferente. Como Misfits, como Marginais, como MM.

22 março 2005

"The Horror"



"You see, there are two of you. One that kills and one that loves."

Apocalypse Now - um filme de viagem, não só de Benjamin L. Willard, mas do Homem, em plena auto-destruição. Um Homem nihilista, da beira da loucura à loucura ela mesma, de uma visão estratégico-superior de poder divino, necessariamente destruidor desse mesmo Deus.

"They were gonna make me a major for this, and I wasn't even in their fucking army anymore."

Na barreira fina, a mais fina de todas, entre "sanidade" (ou cegueira) e loucura, a fronteira mais bela do Mundo (tão bem filmada neste filme) é uma de desafio, de limites. Os que se acabam por quebrar, que nos colocam sozinhos, sem ninguém para onde nos virar. O Homem só, na sua "loucura", no perigo fatal do absurdo do Universo.

O absurdo é real, a realidade não existe. Mas nós não vemos. Lutamos no Nada, no vazio, o nulo sem regras. Tanto por máscaras, as da guerra, ou sacrifícios, os do ritual.

"You are fighting for the biggest nothing in history".

Talvez por estas e por estes nos encontremos mais, e nos coloquemos melhor no verdadeiro lugar da violência, única estrutura real e permanente em todo o Homem. Aqui o medo não existe. E dá lugar à nossa realidade. É sempre à nossa violência que somos chamados, numa paisagem inteira destruída, numa dança wagneriana de máquinas construídas pelo Homem, num "purple haze" que nos queima a alma. E assim nos tornamos em Fogo.

"The horror. The horror..."

E no nosso surrealismo somos seres verdadeiros, vemos mais que outros, e tanto renascemos para morrer outra vez, numa solidão fatalmente reencontrada. É esta a nossa selva, lugar de misticismo e viagem, para destruir o sonho, na guerra da nossa natureza. No fim de tudo que se institui, no fim de tudo que se sustém. Por de lá de todos os limites.

"This is the End".

21 março 2005

Proposta de discussão - III



No anterior The Royal Tenenbaums, convivemos com excelentes actores a desempenharem personagens meticulosamente planeadas. No entanto, apesar de todas as congratulações que envolveram esse filme, nunca me pareceu que Wes Anderson conseguisse criar os momentos de clímax que são necessários a qualquer película.
Voltando ao presente, mais propriamente a The Life Aquatic with Steve Zissou, é necessário dizer-se que a qualidade dos actores permanece e que minúcia e inteligência não faltam na construção das personagens. Contudo, consegue-se ir muito além disso.
Para os compradores da colecção A Odisseia Submarina, que deliravam com as imagens filmadas pela mão de Cousteau e pela equipa do Calypso, este filme proporcionará, no mínimo, momentos de pura nostalgia. (Bill Murray e Owen Wilson de barrete encarnado a espetarem o polegar para cima? Prodigioso!) Mas, mais do que o sentimento de nostalgia provocado pelo filme, teremos de concordar com o facto de Wes Anderson possuir uma imaginação (lembrem-se das criaturas do mar e do barco com múltiplas funções) e uma sensibilidade que roçam o génio.
Só alguém extraordinariamente susceptível e observador conseguiria criar um cenário de decadência, em que as coisas estão velhas e estragadas e as pessoas estão cansadas e desiludidas (reparem que só Anjelica Huston brilha, sempre impecavelmente vestida e penteada), sem nunca perder o espírito cómico. E o que dizer sobre a presença de um Seu Jorge a cantar temas de David Bowie em português (não me parece que algum luso fique indiferente a isso)?
Mais do que uma obra-prima, cujas qualidades gostamos de admirar, The Life Aquatic with Steve Zissou apresenta um retrato quase neurótico das personagens sem nunca afastar um sorriso sincero da cara dos espectadores. Conseguir isso já seria louvável. Fazê-lo tendo como cenário a imensidão de um mar onde vários géneros cinematográficos se dissolvem é, no mínimo, um marco no actual cinema americano.
Conto convosco!
Todos aqueles que se queixam do facto de este blog só "dizer bem", devem lembrar-se de que o Mise en Abyme foi criado com o propósito de homenagear o melhor da sétima arte.

18 março 2005

Confissão seguida de sugestão



Em primeiro lugar, tenho de confessar que só pertenço ao grupo de admiradores de Bill Murray há cerca de dois anos. Admito que, antes de ver Lost in Translation, as suas interpretações não tinham grande impacto em mim.
Contudo, depois de conhecer o Bob Harris, deu-se uma espécie de clique e aventurei-me numa redescoberta da obra de Bill Murray. Filme a filme, fui consolidando a certeza de que estava na presença de um actor colossal. A propósito, recomendo vivamente o Phil Connors de Groundhog Day, o Bunny Breckinridge de Ed Wood e o Raleigh St. Clair de The Royal Tenenbaums.
Confissões à parte, está na altura de nos focarmos em The Life Aquatic With Steve Zissou. Acabadinho de estrear, não quis perder a oportunidade de o sugerir para que, dentro de pouco tempo, possamos juntar-nos aqui a discutir opiniões. Espero que haja muita gente impaciente por ver Bill Murray, numa versão cómica de Jacques Cousteau, a contracenar com a versatilidade de Cate Blanchett.
Até breve!

11 março 2005

La Dolce Vita



"Vengo anch'io. Ha ragione lei. Sto sbagliando tutto. Stiamo sbagliando tutti."
No filme-escândalo por excelência (condenado por tudo e por todos aquando da sua estreia em Itália há já mais de quarenta anos, assim como em todas as missas...), e tornado rapidamente em filme-culto, Fellini não procura mais do que o sentimento mais comum, humano, mas rico, de uma pureza, ou de uma verdade. Marcello/Mastroianni/Fellini é a personagem deambulante pela selva nocturna de Roma, a velocidade dos carros, a Via Veneto, os flashes à procura de "estrelas", a extravagância e a sensação boémia e quente que sentimos, julgado como doce recheio da vida, as orgias, danças e festas que acabam com o amanhecer, até que o último "desista", ou se adie até mais uma fuga pelas estradas romanas.
E Marcello, como nós, como Fellini, procura a pureza, a inocência - em Sylvia/Anita Ekberg, na Fontana di Trevi, depois de ter procurado leite para o gato branco (e quem não iria), na suposta tranquilidade de Steiner e da sua família (o que mostra a que ponto estamos todos condenados, totalmente inferiores perante uma força terrível acima de nós, uma natureza ruidosa que chega com o medo ao sobre-natural), e em Paola, a jovem que se coloca do outro lado da praia, separada por esse mesmo ruído, gesticulando uma música suave para a angústia de Marcello.
E na casa-castelo para onde todos se dirigem, é o local do confronto com todos os nossos fantasmas, com quem ninguém consegue lidar, brincando todos às máscaras numa procissão já diurna, após outras confissões (e Maddalena/Anouk Aimée) interrompidas no jogo sempre viciante.
"Ma lo sai che sei tutto? You are everything, everything! Sei la madre, la sorella, l'amante, l'amica, l'angelo, il diavolo, la terra, la casa... Ecco che cosa sei: la casa!"
E o Cristo que voa sobre Roma, guiado por essas pobres criaturas, tanto como nós, apenas denuncia tudo aquilo que Marcello quer, e não pode. Pois o que ele quer ou não existe, ou deixou de existir. Mas que para sempre procuraremos.
E outro título não poderia existir, para as três horas mais perfeitas do Cinema, e que hão-de durar numa eternidade bem sonhada por uma beleza, a Beleza do cinema de Fellini. Nada mais quis ele filmar.

06 março 2005

"My darling, my blood"

Mais vale ser directo - Million Dollar Baby não só é uma obra-prima como um dos filmes mais monumentais de toda a História do Cinema. O filme não é sobre a luta, é a luta, ou ainda consegue ultrapassá-la, não sei bem para onde, mas para algo que nos deixa de joelhos e que mata qualquer indiferença, muito mais que artística e simplesmente humana. Porque a simplicidade e a serenidade da filmagem de Eastwood reina nesta obra, e de outra maneira não poderia ser. É o que forma um clássico, um sentimento que parecia já perdido nos filmes de hoje em dia, e pertencente a velhos mestres como John Ford.
E não vale a pena escrever muito mais. Tanto poderia falar dos fantasmas deste filme, do seu mistério, dos toques finais riquíssimos de cada parte de cada história, da incrível sabedoria com que Eastwood lida com as suas personagens, e como estas se apresentam em cada interpretação. Mas deste texto nada poderá aspirar a um lugar ou transmitir melhor os sentimentos de Million Dollar Baby. Tudo é arrebatador neste filme, demasiadamente para os cobardes que saem da sala a meio da projecção - e não chamo aos outros valentes. Grandes filmes como este formam grandes homens, que também carregam inevitavelmente todos os seus pecados. Clint Eastwood é um deles. Talvez o último dos clássicos - este é um elogio que ele merece.

03 março 2005

À vossa espera no clube de vídeo - II


The Elephant Man, nos seus tons sombrios, é um ensaio cauteloso em que a câmara prodigiosa de David Lynch reflecte, de forma ambígua, sobre a ingenuidade e a maldade do ser humano. Assim, o realizador registou, crua e friamente, os comportamentos de todas as personagens com excepção do protagonista que foi filmado de maneira afectuosa e complacente.
A história, aparentemente simples, apresenta-nos um homem transfigurado que vive à mercê dos sentimentos que desperta nas pessoas à sua volta. A dada altura, esse “homem-monstro” conhece um médico (Anthony Hopkins num desempenho perfeito) que decide ajudá-lo a construir uma vida quase normal. Porém, esta é uma película de “quases” na medida em que nada se modifica realmente. O destino trágico do “homem elefante” foi decidido à nascença e só a morte, encarada metaforicamente como uma despedida da dor, permite a tranquilidade sonhada.
Num dos momentos mais comoventes de todo o filme, só comparável ao reencontro entre os dois irmãos de The Straight Story, há uma voz que grita mais alto, num mundo de curiosidades mesquinhas e de desejos cruéis, e que clama “I am not an animal! I am a human being! I am a man!”. Perturbador, não é? Arranjem uma cópia e contem-me a vossa opinião.

01 março 2005

Era uma vez...



Billy Wilder, algures na sua carreira, enunciou dez mandamentos relativos ao cinema - “Os primeiros nove são não maçarás. O décimo é terás o direito à montagem final.” Inspirada nas sábias palavras do realizador, gostaria de prestar homenagem a todos os cineastas que, tal como Billy Wilder, contaram histórias inesquecíveis, prendendo o espectador do princípio ao fim sem nunca o maçar. Antes de começarmos, gostaria de avisar que M. Night Shyamalan não fará parte deste tributo. Pertenço à minoria de pessoas que boceja ao longo das suas películas e que não ousa compará-lo a Alfred Hitchcock.
Para fazer oposição ao capricho recalcado de subestimar o talento de contar histórias como se isso fosse uma tarefa fácil ou inata a todos os cineastas, apontarei alguns nomes e contarei com a vossa ajuda para fazermos uma lista dos maiores contadores de histórias que o cinema já conheceu.
Em primeiro lugar, quero enaltecer Charlie Kaufman pelo génio, imaginação e vigor que trouxe ao cinema (Parabéns pelo Óscar!) e Martin Scorsese pela sábia capacidade de conferir densidade e complexidade psicológica à maioria das suas personagens (como mero exemplo, recordemos o pintor de New York Stories).
Em seguida, gostaria de referir Woody Allen, pela proeza de encher salas com espectadores sôfregos por mais uma história típica; Spike Lee pelo excelente trabalho de realização que apresenta em Summer of Sam e sem o qual nunca ficaríamos presos à narração; Wolfgang Petersen e The NeverEnding Story por ser um dos melhores momentos da nossa infância e, claro está, Steven Spielberg que, apesar dos seus altos e baixos, sempre se demonstrou um exímio contador de histórias.
E vocês? Quais os vossos contadores de histórias preferidos?