Depois de tanta polémica à volta do filme português A Cara que Mereces, e devido a tudo o que já foi escrito sobre ele, sinto a necessidade de escrever neste blog, e segundo a minha perspectiva, pela primeira vez, uma "crítica", se quiserem, ou o que se pode chamar um texto pessoal, sobre a própria obra e toda a discussão que se gerou à volta dela.
Seguindo a linha de raciocínio de certos críticos (nacionais) de vários diários ou suplementos, trata-se de uma obra sem nexo, sentido, razão de ser, presunçosa, restrita a um imaginário exclusivo de um pequeno grupo de amigos, directamente representado no próprio filme.
E começo desde já por discordar. Pouco interessa ao cinema se um filme é feito ou não por um certo número de pessoas que se conhecem todas entre elas há já muito ou pouco tempo. Muitas das vezes que tal acontece nunca se traduz em maus filmes, o mesmo se defende em relação a filmes cujo complexo imaginário se "restringe" à cabeça do realizador. Contra estes pressupostos, nunca teriam existido filmes de Godard, Fellini, Truffaut, ou Woody Allen, entre muitos outros. A Bout de Souffle deve ter sido feito por uma dezena de pessoas, todas amigas, e todas vindas do mesmo grupo intelectual, o dos "Cahiers" (revista que começou por destacar este mesmo filme português). Otto e Mezzo foi, por muito que o seu realizador negasse, uma das obras mais pessoais da história do cinema.
A Cara que Mereces, sem ser uma obra-prima, como estas últimas mencionadas, não deixa de ser um verdadeiro atrevimento ao "estado de crise" do cinema português, tanto discutido, e tanto atacado por todos os lados. Culpam-se artistas, culpam-se ideologias, "esquece-se" o público. No entanto, não se sai das radicalizações dos dois lados do debate - por um lado, pede-se o fim de um cinema de combate pós-25 de Abril, "marginal" e "cínico", como se defende o regresso "total" do cinema ao espectador, já tanto esquecido pelos artistas. Assim se chega ao ridículo já público do novo júri do ICAM, cujas famosas opiniões vão contra qualquer espécie de ideia de cinema, ou de tudo o que ele deveria ser.
Nesta defesa de construção de uma "indústria" cinematográfica, ou de um cinema comercial de marca nacional, chegamos à crítica ao tal cinema "artístico" português, que uns defendem podre, afastado da realidade, ou então merecedor de uma profunda reflexão sobre o seu propósito e modo de "funcionamento". Esquecem-se todos que o cinema é já em si "artístico". O facto de filmar o quer que seja, e colocá-lo num movimento ilusório, por uma projecção, numa sala de cinema, com muitos ou poucos espectadores, provoca imediatamente em si um valor artístico inegável. O espectador, não sendo estúpido, rapidamente se apercebe do seu valor artístico, ou da sua eventual inexistência - por vezes correctamente, outras erradamente. Mas cada um tem o seu cinema (ou não o tem).
No fundo, pouco importa toda esta discussão centrar-se à volta de um só filme, tal como já aconteceu tantas vezes, chega até a ser ridículo. Creio que um dos grandes defeitos que nós temos (e julgo ser demasiado fácil afirmar que é por sermos portugueses), é precisamente a constante necessidade de deitar abaixo tudo o que acaba por parecer algo estranho, "despropositado", "insultuoso", ou apenas incompreensível. A Cara que Mereces pouco tem disso - como escreveu Kathleen Gomes, "é só preciso ter tido infância". É esta a grande sensação com que fico do filme, aliás, todo ele parece estruturado à volta da sua ideia, até ao seu fim ("adeus amigos"). Toda a sua simbologia me parece familiar, e em nada exclusiva a sete ou oito pessoas.
Não defendendo que o filme seja perfeito, parece-me mesmo assim que surge, no cinema português, como portador de uma originalidade muito pouco vista neste nosso pequeno "circuito" nacional. Para além da beleza da sua filmagem, e de qualquer outro pormenor técnico (com destaque para a sua fotografia), a sua estrutura surge muito bem conseguida com tudo o que ela parece conter (e que é muito, mesmo parecendo simples - aliás, as crianças "parecem" sempre criaturas simples). Acredito que certas extensões mais "escusadas" (numa linguagem mais directa) são fruto do facto de se tratar de uma primeira obra, mas sem dúvida interessante, bastante rica, e dotada de uma originalidade muito própria, algo que já faltava ao nosso cinema. Espero por futuras obras de Miguel Gomes e pela exploração do seu universo fílmico, possivelmente partindo da mesma doce originalidade, factor principal que me prendeu ao filme e ao seu equilíbrio certo de ironia e "tragédia". Por aniversários, tesouros escondidos, histórias de piratas, quartos escuros (tanto mistério que se reúne aqui, e quando este acaba, também é assim para a infância, tanto no filme, como na vida), ou outros gags. Até lá, que se façam mais filmes, que é do que precisamos.