24 abril 2005

Sobre "A Queda" ("Der Untergang")


Deste filme terá que surgir, inevitavelmente, uma "crítica", pois o tema abordado dificilmente permite outra coisa. No entanto, tem muito que se escreva, tanto pela sua "história", como pelo seu valor.
Filmar os últimos dias de vida de Adolf Hitler é sempre algo de extremamente complicado e, sobretudo, delicado. A tal realidade acrescenta-se o facto de o realizador ser alemão (Oliver Hirschbiegel), e do filme ser, também, um filme para a Alemanha. O que nos é apresentado é um regime já completamente fechado, protegido por uma "aura de loucura", onde os desentendimentos e suicídios se vão sucedendo ao longo que este caminha até ao seu final, concretizado por uma cena documental, que consiste num pequeno excerto de entrevista à que foi uma das testemunhas deste período final do III Reich, a então jovem secretária de Hitler, Traudl Junge. Esta, para além de nos confessar a sua ignorância em relação ao extermínio de judeus em campos "longínquos" de concentração, é representada ao longo do filme como uma personagem algo ingénua, e leal ao ditador, pontuada por momentos desconcertantes de espanto conformista em relação a certos momentos do filme, um deles quando Hitler aponta o dedo à "conspiração" judia responsável por todos os males do mundo. E estamos em 1945.
Assim caminhamos ao longo do filme por este ponto de vista narrativo da jovem Traudl. Algo que, em termos histórico-cinematográficos, não deixa de ser discutível pela importância do "assunto", e com o que se está a lutar em termos colectivo-imaginários, que se concentram no cerne de toda a questão. Desta maneira, ficamos resumidos a uma descrição "realista" dos acontecimentos, de uma construção de uma realidade documental, o que não deixa de ser limitativo quanto à própria qualidade do filme - pois este nunca poderia ser um filme qualquer. Vemos um Hitler carinhoso, a beijar Eva Braun, a brincar com a sua cadela, em trocas de olhares de simpatia com esta mesma secretária, ou a congratular a sua cozinheira pela excelência da sua última refeição. Defende-se aqui um dos que se julga ser um dos aspectos mais importantes do filme - mostrar que a loucura e o mal não se resume aos que já são loucos, mas a todos nós. Um Holocausto, desta forma, poderia ter sido feito por qualquer um.
Mas será isto verdade? Será que o III Reich é assim tão indissociável do que foi o acontecimento mais marcante do século XX? Será a sua origem universal, e não ideológica, uma visão de um povo? Será algo de tão "desculpável", tanto por diálogos, como por estas "imagens"?
O que supostamente choca algumas pessoas afinal é apresentado como algo de verdadeiramente banal. Todos estes momentos são passados aos olhos dos espectadores como qualquer outro no filme, algo escondido por uma suposta máscara documental, por onde tudo parece correr. Mas tal não chega. Não basta mostrar Hitler em alturas de ternura, pois isso nem chega a ser original para um que um filme deve ser, não basta espalhar todo um trauma por um conjunto de frases denunciantes ou, em certos momentos, já atiradas para o ar, nem mascarar toda uma distância (que deveria estar no centro do filme, até pelo que se tenta mostrar) numa secretária que se diz ignorante (e no cinema nunca se deve dizer), ou numa criança ariana que passa de jovem condecorado e orgulho de um Império desfeito, para símbolo de um novo país, que guia a sua bicicleta descoberta nas ruínas, levando consigo a sua desculpabilização, centrada em Junge, algo que acaba por se tornar na tendência do filme.
Assim, o que nos resta ver? Um Goebbels anti-carismático, um "bom-nazi" que acaba morto pelos "fanáticos", um médico-humanista que salva civis, um conjunto de "fiéis" crescentemente preocupados pela "loucura" de Hitler, que parece crescer de dia para dia, e cujo slogan repetitivo, sobretudo já nos últimos dias, parece ser o desejo da morte do povo alemão pela sua fraqueza e derrota final.
No bunker resume-se a queda do regime. Mas não é esta já completamente anterior ao doze dias retratados no ecrã? Não terá esta talvez o seu início já em 1933? Pouco nos deixa à reflexão esta obra, tanto pela sua desconcertante leveza imaginária retratada nestas imagens, como pelo peso brutal da sucessão de assassínios, suicídios e mortes "em directo" em camas de hospital. Será que tudo se pode resumir a isto?
Sai-se da sala não a discutir o filme, mas talvez tudo o que ele não é, que quer ser, mas que também mostra não querer, como uma certa contradição na sua natureza. Somos sim tudo mais depois de Roma Città Apperta e de sobretudo de Germania Anno Zero, obra-prima de Roberto Rossellini. Nesta encontramo-nos muito mais, tanto pela distância, como pela "loucura", a humanidade, a "realidade" que se procura, o mal, ou a verdadeira queda - esta é a do jovem deste último filme, na sua última cena, uma das mais importantes da história do cinema. Aqui nos levamos conta sim de todo o bunker que é a Alemanha Nazi, e não apenas o de Hitler, de todo o trauma que se centra na sua personagem principal, que carrega às suas costas todo o drama da humanidade, e não foge por novos caminhos numa bicicleta, como se nada fosse, de um único suicídio, ainda o da humanidade, e não o de sucessivos militares fardados acima dos "civis". Tudo o que A Queda não é, que apenas a tem no seu título.

22 abril 2005

Vivre sa vie

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Em Vivre sa vie, Godard filma, acima de tudo, e em (quase) todos os seus filmes, o próprio cinema - é aqui que se encontra a sua superioridade artística em relação a tantos outros, uma marca presente em cada plano que vemos da sua obra. Esta será talvez uma das formas mais representativas da modernidade, não só pela consciência de uma independência artística do cinema, estabelecido historicamente e intelectualmente como arte que é, mas pelo aproveitamento dessa própria ideia, e enriquecendo-a através da sua necessária desconstrução. Assim se apresenta a "originalidade" e a nova riqueza do realizador francês, já sublinhada de tantas outras maneiras.
A sequência genial de apresentação do rosto de Anna Karina é emblemática dessa ideia. Somos confrontados não com um rosto, mas com o rosto, o do cinema de Karina. A série de planos tanto vale pelo filme inteiro, pois resume-o idealmente a uma imagem, como por tudo o que representa qualitativamente. É um dos momentos em que o espectador vê-se "obrigado" a gerir o choque com o que surge indefinidamente na tela, e que lhe diz directamente respeito. Pois o cinema de Godard é, apesar de tudo, bem directo.

A prisão do rosto de Karina ao cinema (e o suposto local em que tal momento surge na acção não é obviamente inocente), é ainda acentuado da forma mais bela e por uma das melhores homenagens possíveis, pois o cinema de Godard transpira, também, homenagem. As lágrimas de Falconetti, as de Dreyer, são também as do cinema, as de Karina (mais um vez, o local, a sala de cinema). Como se todo o cinema se concretizasse nesta segunda cena, tanto na tela, como para nós, assim alcançando-se a eternidade.
Prisão e cinema - dois termos inevitavelmente fortes, mas obrigatoriamente ligados. Somos talvez eternos no nosso cinema, mas não necessariamente livres. Esta é a marca da nossa vida, vivendo pelo o que ela é. Vivre sa vie.

21 abril 2005

Mais uma sugestão INDIE

Os frequentadores do primeiro INDIE LISBOA lembram-se certamente de que havia três longas-metragens nacionais à escolha dos espectadores: o badalado A Cara que Mereces, o documentário Lisboetas e o perturbador Noite Escura.
Este ano, a organização do festival pregou-nos a partida de exibir uma única longa-metragem portuguesa. De seu título Adriana, esta película pode ser considerada uma agulha num palheiro cinéfilo constituído por longas-metragens oriundas de países como a Rússia, o Peru, a Polónia, a Coreia do Sul e até Hong Kong.
Perante isto, aguardo pela vossa presença nas instalações do Fórum Lisboa, dia 25 de Abril, às 21h30m.

(Para aqueles que estão na dúvida, aqui fica um pequeno resumo do argumento de Adriana)
Numa ilha imaginária nos Açores, uma comunidade fecha-se em torno do seu senhor, Edmundo, um aristocrata rural, que acabou de perder a mulher na sequência do nascimento da sua filha. Atravessado pelo desgosto, Edmundo declara o luto e proíbe qualquer forma de contacto sexual entre os habitantes. É neste ambiente que Adriana, a filha de Edmundo, cresce, ela que é uma das últimas crianças a nascer nesta ilha. Anos mais tarde, quando a desertificação da ilha se agudiza, Edmundo é levado a tomar uma decisão drástica: enviar a sua filha para Lisboa, para que ela "possa constituir família por métodos naturais". E é assim que, para Adriana, começa a saga na grande cidade.
ADRIANA é a quarta longa-metragem de Margarida Gil, uma obra que se distingue pelo apuro dos diálogos escritos a meias com Maria Velho da Costa, mas também pela deslumbrante fotografia de Rui Poças e as interpretações de Ana Moreira e Isabel Ruth.

20 abril 2005

Falta apenas um dia!




À semelhança do que aconteceu em Setembro e Outubro do ano passado, Lisboa prepara-se para receber o Segundo Festival Internacional de Cinema Independente, mais conhecido como INDIE LISBOA 2005.
Os cartazes e os programas do festival encontram-se espalhados por toda a Lisboa e permitem verificar que a organização não descurou a importância de haver uma panóplia de películas variadas à disposição dos espectadores. No meio de tanta escolha, devo revelar que fiquei impaciente com a perspectiva de assistir ao novo filme de Lukas Moodysson. Para quem sentir o mesmo, não o perca nos dias 22 e 29 de Abril, nas salas do cinema King. Deixo-vos um pequeno texto sobre esta película e espero que nos encontremos aqui para a discutir.

Lukas Moodysson tem na transgressão o seu terreno de eleição. É assim desde a sua primeira longa-metragem “Fucking Amal” e volta a sê-lo neste A HOLE IN MY HEART, o quarto filme na sua carreira. Rodado em enorme segredo num duvidoso apartamento suburbano, Moodysson centra-se em Rickard e no seu filho Eric, que passa a maior parte dos dias fechado no quarto, presumivelmente numa tentativa de se desligar do que se passa no resto da casa. O seu pai, um pornógrafo amador, está a filmar a sua mais recente obra com um amigo, Geko, e uma rapariga chamada Tess. Chocante e perturbante, A HOLE IN MY HEART é, inegavelmente, um desafio e uma experiência quase insuportável.

Vemo-nos por lá!

19 abril 2005

Uma crítica

Depois de tanta polémica à volta do filme português A Cara que Mereces, e devido a tudo o que já foi escrito sobre ele, sinto a necessidade de escrever neste blog, e segundo a minha perspectiva, pela primeira vez, uma "crítica", se quiserem, ou o que se pode chamar um texto pessoal, sobre a própria obra e toda a discussão que se gerou à volta dela.
Seguindo a linha de raciocínio de certos críticos (nacionais) de vários diários ou suplementos, trata-se de uma obra sem nexo, sentido, razão de ser, presunçosa, restrita a um imaginário exclusivo de um pequeno grupo de amigos, directamente representado no próprio filme.
E começo desde já por discordar. Pouco interessa ao cinema se um filme é feito ou não por um certo número de pessoas que se conhecem todas entre elas há já muito ou pouco tempo. Muitas das vezes que tal acontece nunca se traduz em maus filmes, o mesmo se defende em relação a filmes cujo complexo imaginário se "restringe" à cabeça do realizador. Contra estes pressupostos, nunca teriam existido filmes de Godard, Fellini, Truffaut, ou Woody Allen, entre muitos outros. A Bout de Souffle deve ter sido feito por uma dezena de pessoas, todas amigas, e todas vindas do mesmo grupo intelectual, o dos "Cahiers" (revista que começou por destacar este mesmo filme português). Otto e Mezzo foi, por muito que o seu realizador negasse, uma das obras mais pessoais da história do cinema.
A Cara que Mereces, sem ser uma obra-prima, como estas últimas mencionadas, não deixa de ser um verdadeiro atrevimento ao "estado de crise" do cinema português, tanto discutido, e tanto atacado por todos os lados. Culpam-se artistas, culpam-se ideologias, "esquece-se" o público. No entanto, não se sai das radicalizações dos dois lados do debate - por um lado, pede-se o fim de um cinema de combate pós-25 de Abril, "marginal" e "cínico", como se defende o regresso "total" do cinema ao espectador, já tanto esquecido pelos artistas. Assim se chega ao ridículo já público do novo júri do ICAM, cujas famosas opiniões vão contra qualquer espécie de ideia de cinema, ou de tudo o que ele deveria ser.
Nesta defesa de construção de uma "indústria" cinematográfica, ou de um cinema comercial de marca nacional, chegamos à crítica ao tal cinema "artístico" português, que uns defendem podre, afastado da realidade, ou então merecedor de uma profunda reflexão sobre o seu propósito e modo de "funcionamento". Esquecem-se todos que o cinema é já em si "artístico". O facto de filmar o quer que seja, e colocá-lo num movimento ilusório, por uma projecção, numa sala de cinema, com muitos ou poucos espectadores, provoca imediatamente em si um valor artístico inegável. O espectador, não sendo estúpido, rapidamente se apercebe do seu valor artístico, ou da sua eventual inexistência - por vezes correctamente, outras erradamente. Mas cada um tem o seu cinema (ou não o tem).
No fundo, pouco importa toda esta discussão centrar-se à volta de um só filme, tal como já aconteceu tantas vezes, chega até a ser ridículo. Creio que um dos grandes defeitos que nós temos (e julgo ser demasiado fácil afirmar que é por sermos portugueses), é precisamente a constante necessidade de deitar abaixo tudo o que acaba por parecer algo estranho, "despropositado", "insultuoso", ou apenas incompreensível. A Cara que Mereces pouco tem disso - como escreveu Kathleen Gomes, "é só preciso ter tido infância". É esta a grande sensação com que fico do filme, aliás, todo ele parece estruturado à volta da sua ideia, até ao seu fim ("adeus amigos"). Toda a sua simbologia me parece familiar, e em nada exclusiva a sete ou oito pessoas.
Não defendendo que o filme seja perfeito, parece-me mesmo assim que surge, no cinema português, como portador de uma originalidade muito pouco vista neste nosso pequeno "circuito" nacional. Para além da beleza da sua filmagem, e de qualquer outro pormenor técnico (com destaque para a sua fotografia), a sua estrutura surge muito bem conseguida com tudo o que ela parece conter (e que é muito, mesmo parecendo simples - aliás, as crianças "parecem" sempre criaturas simples). Acredito que certas extensões mais "escusadas" (numa linguagem mais directa) são fruto do facto de se tratar de uma primeira obra, mas sem dúvida interessante, bastante rica, e dotada de uma originalidade muito própria, algo que já faltava ao nosso cinema. Espero por futuras obras de Miguel Gomes e pela exploração do seu universo fílmico, possivelmente partindo da mesma doce originalidade, factor principal que me prendeu ao filme e ao seu equilíbrio certo de ironia e "tragédia". Por aniversários, tesouros escondidos, histórias de piratas, quartos escuros (tanto mistério que se reúne aqui, e quando este acaba, também é assim para a infância, tanto no filme, como na vida), ou outros gags. Até lá, que se façam mais filmes, que é do que precisamos.

17 abril 2005

Annie Hall

A neurose da cena inicial. O fundo bege escuro, pano de uma confissão humorística, de histórias inventadas, de desvios emocionais. Um suspiro. "Annie and I broke up".
A infância, as corridas de carrinhos de choque, as idas ao médico. "The universe is not expanding!". A turma da primária, os tios dos tios chatos, a montanha-russa, o imaginário infinito em criança, as primeiras personagens fantásticas, os professores.
Fast forward. Annie Hall, face to face, o poster de Bergman, a discussão, porque existimos em conflito. Os passeios, as fotografias, a música. "Seems like old times, having you to walk with...". Um banco de um jardim, o gozo, o carro, Nova Iorque, a conversa numa varanda. "I really like what you're wearing". "Yeah, it was a gift from Grammie Hall"."Grammie Hall? What did you do, grow up in a Norman Rockwell painting?". O charme, os livros, o vinho, o riso nervoso, as conversas ("I wonder what she looks like naked").
O cais, o rio, o chapéu, a confissão. "Love is too weak a word for what I feel, I lurve you, you know, I loave you, I luff you, two F's". Um abraço, um beijo.
Se apenas as coisas fossem assim. E chegam os jogos mentais, a neurose, as insistências, as perguntas, o desmontar de toda uma relação, de qualquer relação entre nós e o mundo, nós e o outro. A análise, a insatisfação, a desconstrução, o pensar egocêntrico. De novo o cais, na solidão, sem ponte, num plano geral, a ausência. "Alvy, you're incapable of enjoying life, you know that? I mean you're like New York City. You're just this person. You're like this island unto yourself".
Mas todos precisamos "dos ovos". A vida tanto é doce, como amarga. Tanto cumplicidade como rejeição. Mas ainda ninguém percebeu porquê. Apenas é. "A relationship, I think, is like a shark. You know? It has to constantly move forward or it dies. And I think what we got on our hands is a dead shark".
A cena final. O que restam são as memórias, o que ficam são as marcas. Assim vêmo-las partir, tal como Alvy Singer vê partir Annie Hall, e percebe que nunca precisou tanto dela(s). Mas a vida está sempre presente, dela não fugimos. "Still a thrill that it was the day I found you".
"Seems like old times, here with you".

12 abril 2005

Chegou a vez de elogiar um crítico



Numa altura em que um filme como A Cara que Mereces de Miguel Gomes recebe elogios fervorosos por parte da crítica nacional e internacional, eis que Mário Jorge Torres, colaborador do Y, ousa erguer a voz e dar a pontuação mínima a esta patetice sem tom nem som.
Confesso que andava realmente preocupada. Recordo-me de ter lido, no Expresso de 9 de Outubro, o artigo “Caça aos gambozinos” de Francisco Ferreira. Nesse texto, liam-se frases prodigiosas como faz todo o sentido que o filme, num gesto que agradaria a Buñuel, deixe cair a personagem porque os anões “são” Francisco e A Cara que Mereces, na sua doçura contagiante, é um filme sombrio. Quanto a mim, se me permitem a opinião, quer-me cá parecer que Buñuel pagaria para não ter de aturar tal fastio. E, já agora, qual “doçura contagiante”? Estará Francisco Ferreira a fazer alusão à cansativa abundância de pseudo-simbolismos? Ou estará a referir-se à mediocridade dos actores? Ou será que se esqueceu de que a dicção de todos os participantes é lamentável?
Agora que li a opinião de Mário Jorge Torres já me sinto mais descansada. Ainda bem que, apesar dos prémios e congratulações que esta película recebeu, há cabeças pensantes e destemidas no universo da crítica cinematográfica que se faz em Portugal.

11 abril 2005

Come out whatever you are...



A primeira vez que vi Dakota Fanning foi em I Am Sam a contracenar com Sean Penn e Michelle Pfeiffer. Nessa altura, não pude deixar de a comparar com Drew Barrymore. A mesma cara irresistível, a mesma cor de cabelo e os mesmos olhos doces.
Agora que a revi em Hide and Seek, apercebi-me de que esta criança já ultrapassou as semelhanças com a menina do ET. Se reflectirmos sobre o filme, constatamos que este não explora de forma consistente o tema do amigo imaginário e que não traz novidades ao mundo do terror. No entanto, Hide and Seek possui duas mais-valias poderosas: a voz arrepiante e o olhar perturbador de Dakota Fanning. Apesar dos 11 anos, não estamos na presença de uma actriz promissora mas sim de uma grande actriz.
Apetece-nos prever que quem já trabalha assim, só poderá ter uma carreira de sucesso ao longo da vida. Todavia, convém que nos lembremos de nomes como Macaulay Culkin e que nos limitemos a aguardar.

08 abril 2005

O Beijo do Cinema



Em The Quiet Man de John Ford, talvez o seu filme mais erótico (e por vezes deliciosamente perverso), onde a história de amor, sempre presente nos seus filmes, parece passar para primeiro plano, John Wayne e Maureen O'Hara reúnem-se para um dos momentos mais belos do Cinema, o do seu primeiro beijo, entre os dois, e o da nossa ilusão. Wayne berra e quebra a janela atirando uma pedra, as que ele diz estarem enterradas em cada sítio da Irlanda, mas isso não parece chegar para a primeira explosão deste filme, que nos introduz verdadeiramente em toda a sua força e agitação. O'Hara corre, mas Wayne, tal como força da natureza que é, trá-la de volta, não a deixando escapar por um só momento (porque a "miragem", tal como a do nosso cinema, é bem real), confundindo-se com o próprio vento que os parece unir, mais do que separar. Aqui eles exprimem tudo o que sentem um pelo outro, quase sem o ter feito por palavras - tudo o que o cinema deveria ser. Aqui, este é sentimento numa das suas formas mais intensas, e Ford captura-o como ninguém, num enquadramento perfeitamente característico do seu génio. E somos assim arrastados até ao final da sua excelente obra, envoltos em toda a riqueza física dos seus planos, e do seu conteúdo. "O mais belo beijo da história do cinema", escreve Bénard da Costa, explosão de desejo e momento de verdade. Se apenas todos os filmes tivessem um momento assim.

03 abril 2005

Uma escolha diabólica

Durante muito tempo, perguntei a mim mesma a que se deveria a aura de respeito e reconhecimento que envolve a carreira de Mia Farrow. Já a tinha visto em filmes como Hannah and Her Sisters, New York Stories e Crimes and Misdemeanors e as suas prestações tinham-me passado quase despercebidas. Porém, dez anos depois de ter lido o romance de Ira Levin, consegui ver o filme por que aguardava há tanto tempo: Rosemary's Baby.
Lá estão Mia Farrow e, surpresa das surpresas, John Cassavetes de quem só me lembrava dos seus próprios filmes. A dupla funciona de forma perfeita: a beleza quase etérea da mulher a contrastar com o cinismo repulsivo do marido. Mia Farrow está irreconhecível, a voz açucarada que tanto me irritara ganha novos contornos e, pela primeira vez, consegui perceber a que se deve a admiração pela sua carreira.
Voltando ao filme, devo avisar que as várias surpresas do argumento ficam reduzidas a pouco graças à tradução inadmissível do título Rosemary´s Baby para A Semente do Diabo. Ainda assim, preparem-se para um dos melhores trabalhos de realização da carreira de Roman Polanski, sem comparação com o excessivo The Pianist que, por enquanto, é a sua última película.

01 abril 2005

Poemas transformados em filme

“Oh! Ver não posso êste labéu maldito!
Quando dos livres ouvirei o grito?
Sim... talvez amanhã.
Galopa, meu cavalo, serra acima,
Arranca-me a êste solo. Eia! Te anima
Aos bafos da manhã.”
Castro Alves
Antônio de Castro Alves deixou-nos escritos cuja variedade temática é impressionante: poemas patrióticos, amorosos, apoiantes do negro e do escravo, de louvor à mulher, defensores dos grandes ideais, protectores da natureza e reconhecedores do talento de certos actores de teatro.
Conhecido por muitos como “o poeta dos escravos”, deixava discorrer nos versos que compunha um nítido compromisso entre o poeta e o povo, ou seja, uma obrigação de denunciar as humilhações, torturas e desgraças a que os indefesos estavam expostos. Ligado a um sentimento profundamente socialista e utópico, herança do escritor francês Victor Hugo, defendia as grandes causas e pregava reformas universais. Ao lermos os seus versos, constatamos que toda a sua obra respira um genuíno optimismo. Contudo, quando nos dedicamos a estudar a sua biografia, é complicado para nós, enquanto seus leitores, perceber de onde lhe vinha tal disposição para confiar no melhor lado das coisas. Tendo vivido apenas 24 anos, pode dizer-se que teve uma existência bastante intensa.
Nascido na Bahia, numa família ilustre e culta, assistiu muito cedo à morte de sua mãe. São suas as palavras “Traduzi em verso a saudade de minha mãe”. A relação apaixonada e conturbada, que teve com a actriz de teatro portuguesa Eugénia Câmara, marcou toda a sua obra e foi uma afronta à sociedade conservadora de então. Eugénia foi uma grande fonte de inspiração para o autor e um marco incontornável na sua vida. Ao afastar-se da actriz, Castro Alves não voltou a recuperar o equilíbrio e alegria de outrora. Algum tempo mais tarde, sofreu um acidente de caça e, sem outra solução, amputou o pé. A par disto, não nos podemos esquecer da tuberculose que o acompanhou durante muitos anos e que o acabou por matar em 1871.
E eis que chegamos a 1999, ano em que Sílvio Tendler deu a conhecer a sua película Castro Alves - Retrato Falado do Poeta. Para aqueles que leram as últimas linhas e ficaram impressionados com a vida do escritor, recomendo vivamente este filme. Além de cumprir a função biográfica de forma precisa, esta obra fílmica remete-nos para o universo penoso de uma alma doente que conseguiu alimentar o seu optimismo e deixar-nos um dos melhores espólios literários da poesia escrita em português.