31 janeiro 2005

Abram alas à cultura brasileira

O escritor Tabajara Ruas publicou Netto Perde Sua Alma em 1995, recebendo comentários francamente positivos por parte dos críticos de literatura. Como exemplo disso, podemos apontar um artigo do jornal Público, datado de Março de 2003, que descreve esta mesma obra como um “romance histórico brilhante, sintético, frio, visual como um filme”. Ao lermos as últimas quatro palavras, somos levados a recordar que Tabajara Ruas é simultaneamente um homem da literatura e do cinema. Trabalhou com o realizador português José Fonseca e Costa nas películas Kilas, o Mau da Fita e, mais recentemente, O Fascínio. Sem esquecer que realizou, com Beto Souza, a adaptação cinematográfica de Netto Perde Sua Alma (2001).
E eis que chegamos à questão fulcral deste texto: estamos perante uma obra literária e uma obra fílmica, separadas por um período de seis anos. Será que, ao longo desse tempo de intervalo, houve alterações tão significativas na carreira de Tabajara Ruas que dificilmente se encontrem pontos de contacto entre os dois objectos culturais?
Em ambos encontramos o mesmo ambiente histórico. Vive-se no século XIX, algures entre a Guerra dos Farrapos (1835-1845) e a Guerra do Paraguai (1865-1871). O protagonista chama-se General Netto, fervoroso republicano antiescravista e um dos heróis das sangrentas guerras que abalaram e destruíram o Sul da América, na zona abaixo do Equador. Ao examinar as referidas obras, verificamos igualmente que estão organizadas de uma forma peculiar, desrespeitando uma ordem temporal linear e, ao contrário disso, vivendo de constantes flashbacks e flashforwards.
Se nos focarmos na construção das personagens, apercebemo-nos de que o livro explora em algumas individualidades uma certa complexidade psicológica, que o filme acaba por ignorar. Pelo contrário, é notório que a obra fílmica opta por dar mais ênfase e importância à comunidade negra que participou na guerra. (Lembremo-nos do tempo ocupado a filmar festas negras.)
Assim sendo, não será difícil concluir que estamos perante duas obras homónimas, concebidas por um mesmo homem, mas totalmente independentes uma da outra. Talvez o visionamento do filme ajude à compreensão do livro mas não é imprescindível conhecer um para entender o outro. Espero que aceitem estas sugestões. Desejo-vos uma boa leitura e um excelente filme!

30 janeiro 2005

Finalmente uma actriz portuguesa!

O cinema lusitano, recheado de dificuldades e fraquezas que vai tentando ultrapassar, nunca teve muitos apoiantes no interior da população portuguesa. É mais fácil atribuir a etiqueta “enfadonho” a um filme de Manoel de Oliveira ou de Fernando Lopes do que pagar o bilhete e tirar a prova. Assim como é mais simples resumir todos os nossos actores à categoria de “incapazes”, mesmo que existam ilustres excepções a desempenharem papéis notáveis.
Uma dessas excepções chama-se Beatriz Batarda. Começámos por vê-la em Tempos Difíceis de João Botelho, assistimos a prestações em películas de Oliveira e admirámo-nos com o seu desempenho em Quaresma. Contudo, foi em 2004 que o público português se rendeu ao seu talento. Nesse ano, fomos apresentados a Carla, heroína de Noite Escura, e a Evita, protagonista de A Costa dos Murmúrios.
Carla, acostumada a negociatas e prostitutas, espanta-nos com o seu altruísmo e com a sua forte personalidade. Estamos de tal forma estarrecidos com a dureza da sua expressão facial e com a sua linguagem obscena e brejeira que nem reconhecemos Beatriz Batarda. Por outro lado, Evita traz-nos a imagem da mulher bonita, serena e tranquila. Jamais a esqueceremos ao som de Petula Clark ("Quand je ne dors pas // La nuit se traîne // La nuit n'en finit plus // Et j'attends que quelque chose vienne // Mais je ne sais qui je ne sais quoi"), vestida com roupas dos anos 60 e a passear pelas praias moçambicanas.
Da próxima vez que estrear um filme com a participação de Beatriz Batarda, recomendo-vos que não o deixem escapar. É um privilégio poder assistir a todos os passos da sua carreira. Vê-la no grande ecrã é a forma mais agradável de aliviar a nossa memória cinéfila de representações solenes e pouco emotivas, bem ao estilo de Leonor Silveira, e é também a melhor maneira de acreditar no actual cinema português.

27 janeiro 2005

Efeitos secundários de ir ao cinema

Será óbvia a distinção entre ficção e realidade? Será que, depois de irmos ao cinema, conseguimos encarar a “vida real” da mesma forma? Se o filme for de 1975 e tiver o título Jaws, a resposta é não. Aliás, esqueçam a tranquilidade que costumava fazer parte das idas à praia. O mais certo é que passem a ver todos os documentários sobre tubarões brancos e que os imaginem a rondar os vossos pés de cada vez que se aventurarem num mergulho.
O cinema tem destas coisas. Uma película pode mudar a nossa maneira de pensar e de viver. Às vezes, fá-lo de uma forma tão subtil que nem nos apercebemos disso. E valerá a pena ver um filme se já sabemos que ele pode influenciar a nossa vida? Claro que vale! Perder uma película como Jaws, realizada por Steven Spielberg, é que me parece incompreensível.
Desenganem-se se estão convencidos de que se trata unicamente de uma narração de terror. Jaws é uma história sobre homens, inseridos num conflito de interesses, que aprendem a lidar com os seus próprios medos. O espectador, preso à cadeira, assiste a esse processo de aprendizagem que acaba por se transformar num arrepiante jogo de imagens e de sons.
Gostaria ainda de aconselhar um outro filme. Refiro-me a Open Water, distribuído recentemente nos nossos cinemas. Apesar de ter passado um tanto ou quanto despercebido, Open Water surge como uma agradável surpresa para todos os apreciadores de fitas rodadas em alto mar e guarnecidas com belos exemplares dessas criaturas terríficas. Imperdível!

Proposta de discussão


Já são conhecidas as nomeações para os Óscares e, mais uma vez, há ausências imperdoáveis. Parece-me inconcebível que Eternal Sunshine of the Spotless Mind não tenha sido nomeado para melhor filme e que Jim Carrey não faça parte dos escolhidos ao posto de melhor actor.
É inacreditável que se minorize um filme absolutamente genial e que se tenha o descaramento de pôr de lado uma demonstração de camaleonismo. Mas, pensando bem, já devíamos estar habituados. Não foi na cerimónia do ano passado que a Academia roubou a estatueta a Bill Murray?
Dito isto, resta-nos torcer por Kate Winslet e por Charlie Kaufman. E não se esqueçam de fazer figas para que 2005 seja finalmente o ano Scorsese.

26 janeiro 2005

O fato amarelo que não se esquece



Se há actriz que tem vindo a somar vitórias incontestáveis tem sido a Uma Thurman. Olhando para o seu palmarés profissional, damos de caras com nomes como Andy Garcia, Bill Murray e Woody Allen. Contudo, também encontramos prestações menos fantásticas. Nesse aspecto, o filme de Van Sant é uma referência incontornável mas totalmente ultrapassada.
Alguma pessoa poderia imaginar que a Cécile de Volanges de Dangerous Liaisons se iria transformar, 16 anos depois, numa justiceira coberta de pó e terra? E, mais do que isso, alguém poderia supor que adoraríamos vê-la assim? Só Tarantino para pressentir todo este êxito e fazer dela a sua musa.
Sempre achei que, por muitas palavras que usasse, nunca conseguiria descrever a sensação ou mesmo o impacto de a ver em Kill Bill. Plano a plano, sequência a sequência, lá está Uma Thurman a maravilhar numa obra reconhecida simultaneamente pelo público e pela crítica. Proponho que divaguemos até ao momento em que se trocam duas célebres frases.

(Lucy Liu: “You didn't think it was gonna be that easy, did you?”
Uma Thurman: “You know, for a second there, yeah, I kinda did.”)

Poderá não ter sido fácil mas valeu a pena. É pouco provável que voltemos a assistir a algo semelhante. Obrigada Uma Thurman!

25 janeiro 2005

O Trauma do Cinema



Dia 27 de Janeiro marcará o 60º aniversário da libertação do campo de Auschwitz. Após esse momento, em 1945, o mundo mudaria para sempre. Momento, aliás, que ainda não terminou.
O cinema, arte do século XX por excelência, tinha falhado no seu objectivo o acontecimento mais marcante da sua própria época - os campos de concentração. Durante toda a guerra, tratou-se de algo que passou ao lado de toda a civilização, nunca sequer se formando uma imagem concreta do que acontecia. Duvidava-se até, para um largo número de pessoas, da sua existência, algo ainda hoje defendido em teses fanáticas, e com maior sustentabilidade do que muitos acreditam - objectivamente, não existiam simplesmente provas filmadas de tais campos ou actividades.
Depois de Auschwitz, estabelece-se o trauma. O cinema tinha falhado quando mais se urgia o seu papel. Mais que a arte, tratava-se do nosso cinema - falhou a civilização. E para sempre se estabeleceu a distância. Assim filmou esta brilhantemente Alain Resnais em Nuit et Brouillard, em 1955, nas imagens do campo vazio, dos fornos vazios, das chaminés sem fumo, numa das obras mais importantes de toda a História Cinematográfica. Tal como o próprio chega a afirmar, nunca mais se pode filmar da mesma maneira após Auschwitz. Num Holocausto infilmável, é esta a unica maneira que nos resta, ao contrário de A Lista de Schindler, onde tudo surge como se nada do que já aqui escrito fosse.
Assim, também em 1945, nasceu o neo-realismo com Rossellini em Roma, Città Aperta, outra obra fulcral e necessária ao cinema. Na civilização traumatizada, procura-se chegar de novo à realidade crua das coisas, das pessoas, do que tudo é como se vê. Trazer o cinema de volta ao que ele verdadeiramente é, filmando também a consciência da distância, e não falhar de novo. Nunca mais falhar.
E assim ainda se vive, na perseguição da nossa própria humanidade - nunca mais se acabará de falar do Holocausto, de mostrá-lo, de provocar o seu fantasma. Está presente em tudo, tanto na repetição infinita das imagens do 11 de Setembro, como estará sempre noutras catástrofes, e para outras gerações. Para nunca mais falhar.

Uma pitada de terror

Cinco jovens aceitam participar num reality show a ocorrer numa casa decrépita e isolada. Serão filmados por inúmeras câmaras, não terão de superar qualquer tipo de provas e receberão cinco milhões de dólares se conseguirem viver seis meses das suas vidas em conjunto. Até aqui, as semelhanças com programas como o controverso Big Brother são notórias. Contudo, ao invés dos reality shows habituais, as regras deste não incluem a saída gradual dos participantes. Ao contrário disso, se um dos jovens desistir, todos perderão o prémio. Para além das regras enunciadas, existe ainda o facto inovador de os concorrentes serem assassinados e as suas mortes serem contempladas, através da Internet, por milionários doentios. Posto isto, torna-se inevitável admitir que estamos perante um argumento, no mínimo, original.
Quase toda a acção do filme My Little Eye decorre no interior da já referida casa. O realizador Marc Evans, conhecido por outras experiências no campo do terror, optou por imitar o posicionamento das câmaras dos reality shows e criou um filme que funciona a partir de ângulos inesperados. Num cenário doméstico e simultaneamente íntimo, o espectador transforma-se num voyeur atento a tudo aquilo que se vai passando. No entanto, as surpresas não se ficam por aqui. Algumas das cenas de maior tensão, passadas no mais profundo breu, são captadas pelos sensores das ditas câmaras e isso vai conferir um toque fantasmagórico ao espaço e uma compleição apavorante às personagens. Ainda relativamente a processos técnicos, devemos evidenciar o barulhinho arrepiante, pormenor subtil e realista, que acompanha os actores e que pertence às referidas maquinetas.
É importante que, apesar das evidentes qualidades, não caiamos no exagero de considerar que estamos perante alguma obra transcendente. O que se passa é que, contrariamente a tantos outros projectos na área do terror, este filme mantém o espectador preso ao enredo. Aliás, mais do que isso, não nos podemos esquecer da cena em que os cinco protagonistas trocam histórias sobre criminosos psicopatas. Aí, somos invadidos por uma sensação de medo criada e desenvolvida através da sugestão, ou seja, através de tudo aquilo que tememos que apareça no ecrã. E, verdade seja dita, quem cria uma cena, capaz de suscitar autêntico horror, sem recorrer a efeitos especiais ou a bandas sonoras enervantemente altas merece desde já a nossa felicitação.

24 janeiro 2005

Così fan tutti



E o cinema apresenta-se, de novo, como prova de verdade, tal como ele sempre é e seguindo sempre a sua natureza. Em Closer, e nunca Perto Demais, chega-se a uma das suas formas mais verdadeiras.
O Homem tanto define a sua liberdade, como define as suas próprias regras. São estas as do jogo que as quatro peças jogam neste filme, sem as quais "somos todos selvagens" (afirma a personagem de Clive Owen, uma excelente revelação, assim como Natalie Portman). As nossas fotografias "são mentiras", retratos que escondem quem realmente somos, as nossas obsessões, os nossos medos, apenas derramados por uma lágrima, uma gota que passa num rosto recalcado. Este é o cinema cru e fatalmente verdadeiro de Closer, o cinema do Id, que expõe os nossos instintos e pulsões. E quem vence o jogo é quem acaba também por as dominar, acima de qualquer outra regra.
Assim, mais uma vez, o cinema de cada um de nós é o agitado neste filme, obra mais marcante do que qualquer aparência - é esta a importância de Closer, e de todo o cinema, o que acaba por definí-lo. Afinal, acaba por passar por nós suavemente, tal como na música de Mozart, nas passagens extremamente bem geridas do tempo, e nos planos iniciais e finais de uma grande obra de cinema.

22 janeiro 2005

A consagração aguardada


Para um grande número de pessoas, o nome Angelina Jolie é sinónimo de Lara Croft. Ainda que esse desempenho tenha sido o mais espalhafatoso da sua carreira, com todas as sequências de saltos e façanhas marciais, parece-me injusto que a evoquem dessa forma.
Em 1999, Angelina Jolie encarnou a personagem Lisa Rowe e roubou o protagonismo a Winona Ryder em Girl, Interrupted. Fê-lo de uma forma tão prodigiosa que a Academia não ousou negar-lhe a merecida estatueta pelo desempenho de melhor actriz secundária. Depois disso, seria esperável que os senhores de Hollywood lhe propusessem grandes papéis. Contudo, não foi isso que aconteceu e Angelina Jolie nunca mais voltou a brilhar daquela forma.
Nos últimos tempos, pudemos apreciá-la como uma detective perspicaz em The Bone Collector e Taking Lives, como uma amante enérgica em Original Sin e Gone in Sixty Seconds e como uma mulher determinada em Sky Captain and the World of Tomorrow e Alexander. A verdade é que não têm faltado oportunidades para nos deslumbrarmos com a sua beleza mas também é verdade que isso sabe a pouco. A vontade que impera é a de a ver como protagonista de uma grande história, escrita e realizada pelos melhores. Ainda faltará muito tempo para que isso aconteça?

21 janeiro 2005

La Bella Confusione



O que será que nos leva a viver a vida, olhar e sentir o que nos rodeia, o que tocamos, os rostos que vemos? Onde está a verdade para tudo isso, a razão para todas as nossas emoções? Explicar-se-à uma emoção pela razão? "Razão é morte, o mistério é a vida", escreveu Luís de Pina. Filmou Fellini.
Fellini é o verdadeiro cineasta - do espírito, da angústia, da beleza, da magia, do sonho. Aquele que tentou mostrar o cinema digno da vida, de tudo o que ela possa significar. Tal como Guido, enterrar tudo o que carregamos de morto dentro de nós, algo que prove a transcendência humana da única experiência totalmente pura e Verdadeira, a essência da essência - a Vida.
O que é o Sonho? É, também, o nosso cinema. É, também, a nossa vida, o filme desta. A nossa infância, a nossa inocência, a Memória. Tal como Otto e Mezzo. Tal como para Guido, cineasta da sua vida, a sua e a de todos, na sua "passerella" - assim escreveu por notas Nino Rota, outro ilusionista.
É esta busca incessante pelo que há de mais puro e verdadeiro que constrói o nosso cinema, o que tenta responder a algo, talvez ao olhar objectivo de Deus. Que mais dizer perante tanto de vivo, nós, resumidos ao nosso olhar, esse para sempre subjectivo? A Beleza que nos toca, a única coisa que nos toca, flutuante, eterna e alegre, a que nos faz sentir vivos dentro de nós, que nos eleva esse mesmo olhar a sentir a solução estável que precisamos, até depararmo-nos com o que é humano em nós, e para sempre, hélas, instável.
Como passar da solidão sincera do "mistério da própria vida", rejeitá-lo quando o que queremos fazer é vivê-lo, descobrir o amor, sempre pela primeira vez, encontrar a fé que a vida merece? E o que por fim ilumina Guido, ilumina o Homem, é a chave de toda saudade, dança, meditação, profundidade, memória, amor, anseio por viver e por sonhar - Criar. Na paz de todas as inquietações, o Homem é criador. E deve sempre criar.
Sonho é cinema. Cinema é vida, é verdade, a que procuramos, mas que também carregamos todos dentro de nós. É esta a verdade de Otto e Mezzo. Ainda mais que cinema, um hino à vida, uma festa.
Cara Mafalda, Claudia será sempre Claudia em Otto e Mezzo...

20 janeiro 2005

Um desabafo



Há coisas inexplicáveis. Assim como ver inúmeros filmes do Sean Connery, desde os tempos áureos de James Bond, de Indiana Jones ou de Robin Hood e acabar por eleger uma só personagem: William Forrester. Ainda mais incompreensível, pelo menos para os grandes entusiastas de Gus Van Sant, será distinguir Finding Forrester e considerá-lo mais plausível do que Good Will Hunting, ainda mais interessante do que Psycho e muito melhor do que Elephant.
No que toca à minha pessoa, sempre me pareceu que Finding Forrester tem tudo quanto se pode desejar num filme. Só a ideia de haver um universo literário, a funcionar como alicerce de uma amizade inesperada, é qualquer coisa de sublime. Serei a única a não resistir a uma receita cinematográfica cujos ingredientes são a câmara de Van Sant, a classe e o charme de Sean Connery e ainda a versão de um clássico musical (“Somewhere over the rainbow // Skies are blue, // And the dreams that you dare to dream // Really do come true.”)?

19 janeiro 2005

Lembram-se do pinguim?



Stephen King, Rob Reiner, James Caan e Kathy Bates. Quatro nomes sonantes que participaram num assombroso thriller psicológico. O primeiro escreveu, o segundo realizou, o terceiro interpretou e a quarta até ganhou um Óscar. Estávamos em 1990 e o filme em questão intitulava-se Misery.
Quatro anos antes, Rob Reiner tinha realizado Stand by Me, película sobre a cumplicidade de um grupo de amigos. Era a primeira vez que o realizador adaptava uma obra de Stephen King. Quando repetiu a façanha, concebeu Misery e convidou-nos a ser voyeurs da convivência terrífica e obsessiva entre um escritor e a sua maior admiradora.
É certo que Kathy Bates e James Caan formam uma dupla inesquecível mas há uma terceira personagem que não pode ser omitida: a casa. Recordamo-la atulhada de quinquilharia, com as célebres escadas e o famoso corredor a funcionarem como palco para as cenas mais emocionantes. Vemos as torturas, ouvimos os gritos, sentimos o desespero e testemunhamos a loucura mas, quando saímos da sala de cinema, é a recordação da casa que nos persegue como uma espécie de sombra.

16 janeiro 2005

O filme de todos os elogios

Lost in Translation
Há um apelido célebre e há, acima de tudo, um nome completo responsável por uma das grandes obras do cinema americano. Estou a referir-me a Lost in Translation, de Sofia Coppola, que conta com Bill Murray, o exímio apresentador de meteorologia de Groundhog Day, e com Scarlett Johansson, distinta no desempenho intrigante de uma jovem pianista no drama The Man Who Wasn't There, dos irmãos Coen.
Temos um Japão americanizado e, de certa forma, caricaturado a servir de cenário, um humor soberbo que leva o espectador a explodir em sinceras gargalhadas, uma atmosfera etérea a abranger toda a película e uma realização irrepreensível. Como se isso não bastasse, defrontamo-nos com Bill Murray de 53 anos e com Scarlett Johansson de apenas 19. O primeiro, bem diferente do habitual, admirável no modo perfeito como interioriza e interpreta um actor em plena crise de meia-idade. A segunda, misteriosa e inteligente, é abandonada por um marido frenético em pleno Tóquio. Juntos e isolados do resto do mundo irão descobrir novas formas de encarar a vida.
Redigir um texto sobre Lost in Translation é escrever sobre a vida de todos nós. Aquilo que nos agrada logo ao princípio e que se vai consolidando ao longo dos 102 minutos de bobine é a verosimilhança, a simplicidade e o realismo de todas as cenas. Quem de nós nunca participou num karaoke como aquele que é, na minha opinião, uma das sequências fundamentais da película? Quem de nós nunca se sentiu esgotado e até mesmo farto da vida que leva? Quem de nós duvida de que as coisas simples são indispensáveis ao nosso bem-estar? Quem de nós não tem simultaneamente momentos tristes e felizes?
Sofia Coppola atinge a perfeição ao assinar a sua segunda longa-metragem. Recordemo-nos da cena final (uma das mais bonitas de toda a história do cinema), a fugir por completo de toda a espécie de clichés baratos, em que há um reencontro, um segredo e uma despedida responsáveis por um suave tom de compromisso entre ambos.
Lost in Translation permanecerá nas nossas mentes por muito tempo e ficará registado, não por possuir uma qualquer etiqueta comercial, mas por ser um dos mais belos filmes com que o cinema nos presenteou.

14 janeiro 2005

E por falar em cinema sueco...



Lukas Moodysson nasceu na Suécia em 1969, trabalha no cinema há algum tempo e é o próprio Ingmar Bergman que não lhe poupa elogios. Lilja 4-Ever é a sua terceira longa-metragem e o motivo de inspiração para este texto.
As primeiras cenas, violentamente filmadas, desrespeitam o rigor técnico a que estamos habituados e provocam-nos uma agonia profunda que nos leva a querer sair da sala. Porém, logo de seguida, a câmara pára de se mover desordenadamente, a música perde o timbre agressivo e nós, espectadores atentos, sentimos vontade de entrar no filme para pôr fim à angústia daquela adolescente russa de apenas 16 anos.
Lilja foi abandonada por todos aqueles que faziam parte do seu mundo. Resta-lhe a companhia de uma criança viciada em cola com quem tem uma especial afinidade: a ambos foi retirado o direito de viver e dada a possibilidade de sobreviver.
Um dos aspectos mais interessantes desta película é a notável persistência da protagonista em ser coerente face aos seus valores. Contudo, acaba por ser apanhada pela prostituição de uma forma hedionda. Da agonia sentida nas primeiras cenas, passamos a um incrível estado de desespero.
Todavia, quando parece que nada mais pode acontecer, Lukas Moodysson consegue surpreender-nos com a criativa inserção de anjos na acção. Anjos com asas que moram no Paraíso e que ajudam os desprotegidos da Terra. Por muito inverosímil que esta resolução cénica possa apresentar-se, a verdade é que acaba por ser uma forma de nos mostrar a desgraça e a realidade assustadora em que se movem aquelas duas personagens e, consequentemente, os aproximados dois milhões de mulheres e crianças que são, anualmente, vítimas de tráfico humano com fins sexuais. De facto, a todos esses mártires só lhes resta a possibilidade de crer em criaturas protectoras.
Lukas Moodysson é um nome a não esquecer. A crítica até já o apelidou de génio. Para aqueles que decidirem ver este filme, aqui fica o conselho: prestem atenção à sensibilidade com que Lilja é filmada ao não conseguir suportar a grandeza da liberdade.

O Rosto da Sarabanda



Do último filme de Bergman, muito se pode dizer, mas tudo é dito. Das paisagens que são rostos, dos rostos que são paisagens, são o cinema de cada personagem - um cinema inevitavelmente sincero, absoluto, profundamente carregado, tal como o seu silêncio, tal como a sua música. Saraband funciona como uma ópera, na presença vital da sua música, dos seus actos e pelo papel e posicionamento das suas personagens. Numa capela, num imaginário, num suicídio, numa razão de existir ou na procura de um lugar. O que nos agita, o que nos prende, a razão de actos inconsequentes, ou não, as nossas perdas, aquelas às quais nos agarramos e não podemos largar, aquelas sobre as quais vivemos, no nosso lar (o que é o nosso lar?).
Rosto é o cinema, de Bergman, das personagens, o nosso, que nos toca (o que em Hitchcock defino ser pelos olhos). Não só é angústia, é náusea colada no nosso passado, o que sente Johan no corredor, antes de entrar no quarto, juntando o corpo ao de Marianne, caída no conflito (compreendido?). Acaba também por se tornar em esperança, na resolução do complexo de Karin, mas igualmente no absurdo, o de Henrik.
Que nos diz Bergman? Tudo - para além de todo o Tempo, por entre todas as notas. Por sarabandas, um cinema de pares.

12 janeiro 2005

Ao som de Irene Cara

Estávamos em 1983 quando Adrian Lyne realizou a obra que viria a marcar toda uma geração: Flashdance. O filme contava-nos a história de uma jovem bailarina, cujas maiores aspirações passavam pelo reconhecimento artístico e pela realização amorosa.
Há quem tenha descrito esta película como “um argumento medíocre, cheio de clichés” e a verdade é que o mérito de Flashdance não está relacionado com um enredo excepcional e nem com um elenco radioso (excepção feita à protagonista). A sua grande qualidade está no facto de ser inesquecível. Há alguém que não reconheça o tema musical “What a Feeling”, vencedor do Óscar de melhor canção original? Há alguma pessoa que não se recorde das muitas acrobacias de Jennifer Beals? O próprio Nanni Moretti, em Caro Diario, procura-a desesperadamente pelas ruas de Roma, numa inesperada homenagem.
Nenhum outro filme de Adrian Lyne, nem mesmo Nine 1/2 Weeks, Fatal Attraction ou Lolita, alcançou o estatuto deste. Flashdance transformou-se numa obra evergreen. É um daqueles objectos culturais que, graças ao seu carácter actual e duradouro, permanece na memória universal de uma forma sempre-verde. Quem de nós nunca reparou nos inúmeros plágios que têm sido feitos a partir da sequência final ou das cenas nocturnas de Jennifer Beals?
Flashdance, filme de ritmo e de movimento, foi trazido até nós no princípio da década de 80 e continuará a vencer, ao longo dos anos, a batalha de não ficar esquecido num ponto fixo da linha cronológica.

05 janeiro 2005

Mais uma fascinada pela fascinante

Desde os primórdios da indústria cinematográfica que os espectadores são atingidos pelo poder feminino das actrizes. Se recuarmos até 1915, ano estrondoso para D. W. Griffith que apresentou a película Birth of a Nation, lembramo-nos de Lillian Gish e do seu invulgar encanto. Depois disso, muitas outras vieram e inúmeros admiradores acorreram às salas de cinema para verem e reverem desempenhos inolvidáveis como os de Rita Hayworth em Salome, Claudia Cardinale em Once upon a time in West e Liv Ullmann nessa obra-prima a que se deu o nome de Persona.
Chegados ao nosso tempo, que actriz destacaríamos? Um nome ecoa na minha cabeça: Emmanuelle Béart. Homenageá-la significa celebrar as suas maiores qualidades: versatilidade, beleza etérea, poder hipnotizador, enorme sensualidade e presença inigualável. Recordemos, por momentos, a empregada ambiciosa de 8 femmes, a dançarina ambígua de Nathalie e a mulher carente de Histoire de Marie et Julien.
Emmanuelle Béart, 38 anos, está no auge da carreira. Basta a sua presença para que um plano se transforme num momento perfeito. Basta a sua capacidade interpretativa para que nos deixemos enfeitiçar por uma personagem. Ao vê-la, sentados na escuridão de uma sala de cinema, congratulamo-nos com o empenho e com a dedicação que tem oferecido ao cinema. Há poucas actrizes que conseguiram, conseguem ou conseguirão atingir o público de uma forma tão fulminante. Aguardemos obras futuras e fascinemo-nos.

04 janeiro 2005

A importância de Hitchcock


Se não for dos maiores realizadores de todos os tempos, Alfred Hitchcock será então o maior. Não é choque nenhum referir Hitchcock como sinónimo de cinema, ou um dos muitos que se pode dar. É, sem dúvida, muito mais do que um realizador de filmes ou de actores. É um realizador de espectadores - são estes que ele dirige. Nunca o jogo de manipulação entre a imagem e esses últimos atingiu proporções tão importantes como no seu cinema. Hitchcock faz-nos ver coisas que não existem, leva-nos a pensamentos obscuramente rejeitados, e torna-nos em personagens de um filme seu, tal como criminosos. O seu cinema aponta sempre para o total numa "ditadura da câmera", uma linguagem puramente fílmica. Forma-se uma gestão perversa da totalidade do movimento cinematográfico, traduzido no "suspense" da acção e na tensão da percepção, chamando constantemente o fantasma da ideia de todo, apresentando-o como nunca em cada plano.
O espectador torna-se absolutamente dependente do que vê e é alvo de uma manipulação inteligente e eficaz. Em Hitchcock, o sugerido torna-se aceite, transformando o receptor da imagem numa personagem perversa, tal como o seu cinema. Revela-nos sentimentos recalcados, joga com as nossas pulsões, convida-nos a pronunciarmo-nos sobre o que é o nosso próprio cinema e os seus limites, suspende-nos para apenas depois nos prender mais uma vez, tal como se de criaturas nos tratassemos. Remete-nos para a lembrança aterradora da existência do inexplicável mistério da essência do nosso comportamento, sobretudo o seu Mal, erotizando esse mesmo choque pelo poder absoluto da imagem.
Quem é o "psycho" no cinema de Hitchcock ? Quem é que Hitchcock está a filmar ? Ao dirigir-nos, somos objecto da mestria do suspense da promessa de totalidade do filme, sentimos tanto manipulação como identificação, voyeurismo, angústia, sofrimento ou prazer – aqui se encontra a riqueza e complexidade do cinema de Hitchcock, contado não pelas bocas, mas pelos seus olhos, os das suas personagens e os nossos.
O fascínio de Hitchcock é humano – humano também é fascinar-se pelo seu cinema.

03 janeiro 2005

Os Sonhadores


Até que ponto se pode viver o cinema? Mais do que a simples projecção de um filme, a sala de cinema é o local privilegiado para a transfusão de imaginários entre o realizador e o espectador, através do exponencial metafísico e da dimensão imaginária das próprias imagens. Neste jogo de sugestão, interpretação, e assimilação do que se vê no ecrã, a existência física do indivíduo é logo esquecida no estabelecimento da ilusão do movimento das imagens – isto num cinema-ideal, e que deve sempre ser procurado por parte de quem faz o filme.
A sugestão irresistível de Bertolucci em The Dreamers (Os Sonhadores) transporta esta mesma ideia para o domínio do físico na realidade exterior à sala, projectando-se assim o corpo para um outro lugar – o do seu cinema, libertando-se do seu limite físico, tal como o espectador na sua sala escura, para existir de uma outra maneira e por um outro veículo, agora imaginário. Tal acontece um pouco (ou bastante) com cada cinéfilo, e intensamente com Théo e Isa, e, por algum tempo, com Matthew. Este último fascina-se pelos dois irmãos gémeos, seres que não fazem outra coisa senão viver o cinema deles, acabando por partilhá-lo com o próprio jovem americano, que entra neste mesmo jogo de quebra dos limites. Afinal, não será o cinema também isso ? Um novo lugar, uma nova existência do espectador, a inexistente intervenção de limites físicos em algo qualitativamente semelhante a um sonho?
Daí a nova humanidade, algo aspirado pela luta política vivida na altura, e por Matthew junto dos seus novos amigos, numa cinefilia, mais que militante, como condição da própria existência (assim, quando este pergunta onde nasceram, Isa responde : "I entered this world in 1959, sur le trottoir des Champs Elysées..."). No entanto, até onde pode ir esta desintegração física no dia-a-dia, a convivência ilusória e ficcional entre os três (porque o cinema, objectivamente, também é ilusão e ficção, uma impressão da realidade - aqui o Maio de 68 de cada um dos três jovens), ou melhor, entre um cinema (dos irmãos), e um terceiro? Será a convivência dos cinemas de cada um inquebrável na progressiva transformação ilusória da realidade? Até que ponto surge a ruptura, a necessidade do tal limite humano, sem o qual qualquer existência social está condenada? É nesse momento que aparece a pedra a quebrar a janela, o acordar final de Matthew e a conclusão que se adivinhava, construída pelo seu próprio cinema no choque com o de outros, e numa luta para se agarrar ao seu lugar – o sonho.

01 janeiro 2005

Bem-vindos

O que é o cinema? É uma sala, uma projecção, espectadores, um movimento ilusório de imagens, um fantasma que se cria, um jogo sugestivo (por vezes alucinante) de emoções, do recalcado, do nosso próprio cinema. São existências ideais, um espelho-espectáculo, reacções a uma hipnose, a tomada de desejos pela realidade ou a transposição destes para uma nova realidade: a do espectador. O cinema actua nas nossas existências como o processo fílmico de mise en abyme: está encaixado em nós e reproduz a nossa própria vida.
Assim, surgiu a ideia de escrever sobre todo o cinema. Sobre o nosso, mas que também é de todos. Sugerimos então este espaço de reflexão, de idealização, de homenagem e de tributo ao cinema que vemos e que criamos: uma dolce vita, uns morangos silvestres, uma janela indiscreta ou uma fúria de viver. Sejam bem-vindos.
Francisco Valente e Mafalda Azevedo