30 maio 2005

Olhos abertos, ouvidos atentos

Oh how many arms have held you
And hated to let you go
How many, oh how many, I wonder
But I really don't want, I don't wanna know

Oh how many lips have kissed you
And set, set your soul aglow, yes they did
How many, oh how many, I wonder, yes I do
But I really don't want to know

So always make, make me wonder
And always make, make me guess
And even, you know even if I ask you
Oh
darling oh don't you, don't confess

Just let it, let it remain your secret
Oh for
darling, darling I love you so
No wonder, yeah no wonder, I wonder
Mmm, 'cause I really don't want, I don't wanna know

John Travolta canta I Really Don't Want to Know para Gabriel Macht e Scarlett Johansson

24 maio 2005

O cinema de Antoine Doinel

François Truffaut talvez tenha sido o único realizador com o privilégio de ter tido a mesma personagem para si, a sua personagem, para filmá-la ao longo dos anos, em diversos estados da sua vida - cinco, mais precisamente: Les Quatre Cents Coups em 1959, Antoine et Colette em 1962, Baisers Volés em 1968, Domicile Conjugal em 1970, e L'Amour en Fuite em 1979. No primeiro destes filmes, Antoine Doinel, no filme da vida, e Jean-Pierre Léaud de nome real, tinha 14 anos, e no último andava já nos seus trinta e poucos.
Por este alter-ego de Truffaut, personagem também já independente à medida que foi crescendo, fomo-nos apaixonando pelo seu cinema desta forma verdadeiramente única. A infância, as paixões, as hesitações, a inocência, a naïveté, as ruas de Paris, nossas e dele, as mulheres, os livros, as piadas, as corridas (sempre de Doinel), o amor, a desilusão, a fraqueza, as obsessões, as pessoas.
Este cinema, o cinema, tal como essas, nunca mudam. Mas como o último título indica, foge-nos o amor, foge-nos aquilo que mais queremos, foge-nos aquilo pelo qual vivemos, por culpa própria, porque vivemos.
Doinel não tem culpa, e nós simpatizamos com ele, porque somos testemunhas do seu cinema, de todo o concretizar da sua ideia. É todo um filme que já não nos deixa, porque também o somos e também queremos ser. Como Doinel, que quer ser amante, marido, pai, filho, irmão, e quer ser amado, por mulheres, livros, músicas, pela vida. Assim ele confessa, ao despedir-se de Christine em Domicile Conjugal, quando esta, no táxi, lhe responde que, de sua parte, apenas quereria ter sido sua mulher.
A dificuldade do compromisso com a vida será indubitavelmente mais complexa que a identificação entre o nosso e o de Doinel. De muitas formas, este é uno, ou inevitavelmente identificável, muito mais do que por uma consequência cinéfila, mas por uma consequência de vida ("os cinéfilos são pessoas doentes", dizia Truffaut). Aqui estas confundem-se, e confrontamo-nos com as nossas sensações. Tal como Doinel em conversa com a "spychologue", ou com um amante, o "principal", de sua mãe, muitos anos mais tarde depois de o ter visto pela primeira vez em Les Quatre Cents Coups, apenas na última obra L'Amour en Fuite.
Por todos estes pontos somos testemunhas de tudo o que é vida - tanto beleza, humor, ou tristeza. De todo o cinema, o de Truffaut será o mais sentimental - o que toca em todas as relações, em todos os degraus, em todos os momentos, sempre de forma majestuosamente subtil. Chega a ser arrebatador, tal como quando saímos das salas e somos lá fora, toda a passagem por sentimentos tão distintos, por posições, frases ou olhares tão verdadeiros.
E à qualidade de todo este cinema junta-se toda uma cinefilia, a das citações das imagens, a da nossa vida, as que se tornam nossa vida. Este é o cerne de todo o cinema de Truffaut, de todo o nosso, naquele que viveu como um dos realizadores mais apaixonantes de sempre. E assim continuará, por todos os rumos que se seguirão. Tal como o fez Doinel, Léaud, Truffaut. No cinema da vida.

19 maio 2005

O Rapaz que era Homem, o Homem que era Rapaz



Antoine Doinel, Jean-Pierre Léaud, François Truffaut, trinta por uma linha. O realizador que tinha atacado praticamente toda a "classe cineasta" francesa da altura, e apontado o caminho pela chamada escola "Hitchcocko-Hawksiana", surge com Les Quatre Cents Coups em 1959, ano mágico de estreia da Nouvelle Vague. E de odiado e desprezado, passa para amado.
Aqui vemos Paris como nunca tinha sido filmada, uma infância como nunca tinha sido testemunhada, por movimentos rápidos, conscientes de uma visão, olhares adultos por uma criança em fuga, da escola, da mãe, dos outros.
Essa consciência, esse toque instintivo de Truffaut, viria a ser a marca de um cinema, aqui, o seu, totalmente apresentado aos nossos olhos, conquistando-nos pela fuga que não é culpa (as corridas de Doinel do seu mundo ingenuamente, ou não tanto, adulto), pela experiência que não é evitável, pela fantasia que não se agarra.
Na cena clássica da conversa-entrevista com a psicanalista, uma das mais comoventes da História, vemos Doinel/Léaud/Truffaut a confessar-nos directamente todo o filme, todo o seu próprio cinema, tal como um adulto, tal como o é na realidade. Comovente tal como o gesto à saída da sala de cinema, levando consigo a fotografia de Mónica e o Desejo.
E a inocência que se perde, tal como a vela que arde e incendeia Balzac, é a que já não pode voltar no último plano do filme, no olhar confessional sem retorno, sem conciliação. Tudo mudaria para sempre.
Assim era Truffaut, nunca pedindo a reconciliação, sempre filmando na vida, espelhada no ecrã, e tocando-nos a todos, fazendo Les Quatre Cents Coups. O cinema, por uma vez, deixava de ser ilusão.

Desde Janeiro de 2005

18 maio 2005

Uma óptima companhia

Olhando para o cartaz de In Good Company, somos levados a pensar que estamos na presença de mais um filme definível nas palavras leve e banal. Grande erro! In Good Company, graças ao seu comedimento e à sua despretensão, merece um lugar de destaque neste blog.
Prestemos atenção aos actores. Se existissem dúvidas quanto ao enorme talento de Scarlett Johansson, bastaria que comparássemos este desempenho ao de Lost in Translation. Em 2003, Scarlett Johansson descobriu novas formas de encarar a vida na companhia de Bill Murray. Agora, surge como filha adolescente de Dennis Quaid. Duas interpretações distintas e absolutamente perfeitas em parceria com dois actores da mesma geração.
Utilizou-se há pouco a palavra "comedimento" e é necessário regressar a ela. Não há um único espalhafato emocional neste filme que, afinal de contas, transpira emoções. A personagem de Topher Grace, toda ela envolvida em sofrimento, surge como um registo discreto de uma alma abandonada pelo pai, pela mulher, pelo novo amor e mesmo pela carreira. Seriam de esperar cenas de fazer chorar as pedras da calçada, não acham? Porém, aquilo que temos é um porsche continuamente amolgado e muitas noites mal dormidas. Toda esta sobriedade na dosagem das emoções do personagem, sem cair em escorregadelas e exageros depressivos, faz de Topher Grace uma autêntica revelação.
Em suma, In Good Company (demarque-se a ideia de despretensão) revelou-se uma boa surpresa. Por vezes, caímos no erro de subestimar a capacidade cinematográfica de agradar a assistência. Consciente disso, apetece-me sugerir este filme a todos aqueles que acreditam no cinema como um meio agradável de encarar a vida. E mais não escrevo! Vão ver e apareçam por cá!

17 maio 2005

A Beleza que Sofre



Poucos rostos foram tão marcantes dentro e fora de Hollywood como o de Ingrid Bergman. E este não radiava apenas beleza no ecrã, mas sim algo que sempre se manteve colado ao seu percurso cinematográfico e, quem sabe, à sua própria vida - o sofrimento.
Esse rosto único apelava ao seu papel de "vítima", como escreve João Bénard da Costa, em tantos filmes de realizadores-mestres dos estúdios norte-americanos, como ao seu público, masculino e feminino, todos testemunhas de compaixão das suas maravilhosas actuações. É Ingrid Bergman que sofre de amor e de mentira em Notorious, do seu passado e do futuro em Casablanca, que permanece desesperadamente fiel e doente em Under Capricorn, que surge como sacrificada no sonho de Dalí em Spellbound, imóvel como uma estátua e com uma seta no pescoço, desfazendo-se e desintegrando-se em bandos de formigas, que abandona Hollywood para se entregar a Rossellini, e sofrendo pela humanidade nos vulcões de Stromboli, em Europa 51, ou em Viaggio in Italia, obras-primas do seu segundo marido, por quem "traíu" a América e se encontrou na mesma arte.
Afinal, será que chegamos a conhecer Ingrid Bergman, a compreender todo o significado do seu olhar, da sua beleza, da sua tristeza, da sua verdade? A ela devemos toda a dimensão por onde o seu olhar prolongou o cinema, a(s) história(s), todo um sacrifício presente em cada obra. Sem dúvida, um cinema mais rico, e um dom único, por cada um dos planos por onde sentimos as passagens melancólias entre cada fotograma, num olhar para sempre intenso e verdadeiro.

15 maio 2005

Hannah and Her Sisters



"The only absolute knowledge attainable by man is that life is meaningless.” Leo Tolstoy
Neste filme digno de um conto russo, testemunhamos o Homem perdido no seu absurdo. É essa a sua realidade. O pesar da sabedoria que questiona tudo, até nós próprios ou qualquer acto superior de poder e de criação, estamos sozinhos num quotidiano de angústia - questionar os laços que nos rodeiam, que nos formam, os caminhos que escolhemos, as opções que tomamos, as relações que desfazemos.
Na tentativa de encontrar em vão o significado de alguma coisa, o Homem na solidão é o que vive nos limites, no perigo consciente da sobrevivência. Perdido no espaço infinito e sem fronteiras do Universo, tomar um lugar torna-se numa missão condenada e desprovida de sentido. Tudo o que tenha vida acaba, eventualmente, destruído.
Mas o Homem vive por distracções. E acaba por criar as suas próprias ficções. Tanto por ilusões positivas de espiritualidade, por laços de estatuto social, pelas raízes da sua família, pelo refúgio criativo da arte. Ou pela casualidade das suas relações. Restam-nos os momentos doces que surgem, como por acaso, ou por sorte. "Lucky I ran into you".
E o que o leva à loucura, ou à irracionalidade de actos de infidelidade? Tal apenas corresponde à sua natureza violenta, de destruição, de por fim a tudo, sem base ou sentido a que se possa agarrar. Instável como ela é, egoísta vive assim o Homem.
Mas mesmo no seu ponto mais egocêntrico (von Sydow), acaba sempre por precisar de alguém, do outro, o "inferno", o que não encaixa na sua realidade, a que vive sozinha.
Talvez a conclusão seja não valer a pena procurar compatibilidades, pois essas não existem. E deixarmo-nos levar por pequenos momentos que nos preencham. "In love again".

09 maio 2005

A vida como um direito



Mar Adentro volta a trazer-nos a câmara de Alejandro Amenábar envolvida nos meandros da morte. Mais do que isso, permite que nos confrontemos com a grandeza interpretativa de Javier Bardem como centro de um filme que tenta acrescentar algo à temática da eutanásia. Politiques e convicções religiosas à parte, esta película tem o mérito de atingir a sensibilidade do espectador.
Consigo concordar com quem afirma que Alejandro Amenábar se excede em alguns momentos de um sentimentalismo lacrimoso mas não deixo de assumir que a grandeza do filme está precisamente nos sentimentos que desperta. Se Javier Bardem alcança a mestria com a sua personagem, os outros actores não lhe ficam atrás. Com eles sofremos e com eles choramos genuinamente.
Sabemos que o protagonista deseja morrer, vemo-lo a olhar pela janela do quarto e assistimos ao seu desespero diário. Compadecemo-nos com Ramón Sampedro mas sofremos com as personagens que o acompanham. Um pai que se refugia em premonições, um irmão cujo amor fraterno é superior à tentativa de compreensão, um sobrinho adolescente que assume de forma incansável qualquer tipo de tarefa, uma cunhada que deu sentido ao dia-a-dia e uma amiga que encontra um abrigo para a sua vida inútil. O que será deles depois do acto consumado? Entramos na sala de cinema a conhecer o desfecho do filme. A inquietação só surge quando nos apercebemos de que é sobre aquele conjunto de personagens que recaem os nossos sentimentos.
Emoções, paisagens galegas, mulheres bonitas, música e poesia. Não é impensável que olhemos para Mar Adentro como quem olha para um filme comezinho ou unicamente sentimentalão?
A não perder ainda no cinema Ávila!

02 maio 2005

Quando a Vida era o Écran

Eis que surge o que virá a ser um dos acontecimentos cinéfilos do ano: a Cinemateca Portuguesa apresenta, neste mês de Maio e no próximo mês de Junho, uma retrospectiva integral de François Truffaut. São vinte e uma longas-metragens e três curtas-metragens - tantos planos, tantos actores, tantas estórias, tanta História.
Desde Les Quatre Cents Coups, obra-prima que nos apresentou ao mundo em 1959, e que mudaria a paisagem cinematográfica francesa para sempre, até Vivement Dimanche! de 1983, passando por filmes como Jules et Jim, Baisers Volés, La Nuit Américaine, ou Le Dernier Métro, esta é uma oportunidade única para relembrar a carreira de um dos realizadores mais significativos de sempre. A sua vida, o alter-ego Jean-Pierre Léaud, actor-orfão, tal como o seu mestre, as mulheres dos seus filmes (nomes tão importantes como Jeanne Moreau, Catherine Deneuve, Isabelle Adjani ou Fanny Ardant), tudo espelhado numa extrema elegância e subtileza que sempre caracterizou o seu cinema.
Para nossa felicidade, foi aí que Truffaut se encontrou, um jovem rebelde crítico, defensor de uma revolução cultural do cinema francês, que se tornou num verdadeiro modelo para qualquer amante cinéfilo, ou amante da vida. Pois a Vida é o Cinema de Truffaut, por jogos de infância, de solidão, de amor, ou de traição. Poucos são os outros em que nos revemos mais, em filmes de tanta riqueza e tão diversos, no cineasta que é o clássico dos modernos. A não perder, por uma questão de Vida.