29 março 2005

Os Verdes Anos

Todo um cinema junta-se aqui - o do Novo Cinema Português e os seus nomes (Paulo Rocha, realizador de Os Verdes Anos, Fernando Lopes, António de Macedo), o Restaurante Vá-Vá, a praça de Alvalade e a Avenida de Roma, e sobretudo, uma Lisboa que parece respirar uma mudança, uma realidade que escapava ao ambiente social de certas alturas, as dos oitavos andares, ou que choca no fundo do poço, agitado pela pedra que cai em profundidade. Trata-se da queda presente nesta obra, a de todas as escadas, das vistas (o elevador de Santa Justa), das colinas de Lisboa, da claustrofobia da personagem principal, a (sua) visão fixa e subterrânea da sua oficina.
Também se trata de uma nova realidade cinematográfica do nosso país, uma nova arquitectura (presente(s) em cada um dos planos deste filme), a da matéria cinematográfica sobre a mera história. M.S. Fonseca afirma que estas são personagens sem psicologia - arrisco a lembrar-me de Cézanne, e também da sua arquitectura modernista.
E a presença de Paulo Rocha e o emocionante aplauso de todo um público na sessão de hoje na Cinemateca Portuguesa, grupo e figuras máximas de toda uma humanidade criativa e imaginária, não mais representa, para todos nós, que o concretizar de todo um Cinema. Aqui nos apercebemos, observando o cineasta e toda a sua (e nossa) emoção, do choque mais verdadeiro de todos - o do (nosso) Cinema com a vida real e presente. Por estes momentos não esperamos, por todo um transbordar da nossa realidade mais pura e íntima, sob o reconhecimento real da nossa existência, enquanto seres, enquanto pessoas, enquanto figuras frágeis que somos, cercadas num Universo demais misterioso para a nossa racionalidade. Por estes momentos, surge toda uma vida, vemos que toda a fragilidade e insegurança de um pensamento, de uma visão, ou de uma obra é afinal onde se concentra toda a sua beleza, e de onde parte toda a sua força. Por estas obras, por estas sessões, enriquece-se o nosso Cinema. E mais não nos resta senão aplaudir, sentir, ou chorar. Assim vivemos.

28 março 2005

Efeitos eloquentes do vinho


Envelhecer, chegar a meio da vida e sentir que não se construiu nada a que nos possamos agarrar. Olhar para os outros, não nos identificarmos com aquele que sempre foi o nosso companheiro, o nosso melhor amigo. Refugiarmo-nos numa paixão que nos acalenta e nos transporta para um mundo de tonturas e de ressacas. Depositarmos as nossas esperanças num projecto literário que todos recusam. Constatarmos que o grande amor da nossa vida já pertence a outra pessoa.
Sideways é sobre tudo isto: sobre a vida autêntica, aquela que encaramos diariamente e à qual tentamos fazer frente com alguma ironia. About Schmidt já nos tinha mostrado muito disto e isso prova que Alexander Payne sabe filmar a vida e sabe escolher protagonistas: Jack Nicholson numa primeira instância e agora Paul Giamatti. (Já o tínhamos visto recentemente em American Splendor num registo ainda mais depressivo.)
Pensemos em Sideways como um filme de pessoas simples, até banais, que encerram em si mesmas a habilidade de sobreviverem - seja a fazer um estudo sobre vinhos, a planear um casamento conveniente, a falhar tacadas de golfe, a alinhar em esquemas sexuais ou simplesmente a olhar para uma paisagem.

24 março 2005

The Misfit

Marilyn Monroe, Marilyn e a Morte, M e M. De Mistério, de Miséria, de Mulher, de Mãe, de Magia, de Mínima, M de Misfit. No seu último filme, de John Huston, o último também do seu "Pai", Clark Gable, esta surge transformada, e como em nenhum outro filme, a fazer o papel de si própria, num conto escrito pelo seu Marido - M de Miller, Arthur.
E de todas as Marilyns, porquê em The Misfits ? Por que apercebemo-nos do que já tinha acontecido ao ver todos os seus outros filmes. Ver Marilyn Monroe na tela das imagens é interiorizar toda a sua História, a sua presença, mas sobretudo a sua ausência, a sua beleza, mas toda a sua tragédia, a Vida, mas igualmente a sua Morte, a do Mistério, de MM, o que fascina os novos espectadores, os que ainda pensam nela, os poetas que ela criou, os realizadores que se apaixonaram, os mitos que ela gerou, as histórias que se imaginaram.
Quem lhes dera, a eles todos, e a todos nós, que o seu Fim se encontrasse como o desta obra, óptimo filme de Huston, desenhado para a Pessoa de Marilyn, no caminho da estrela que a guia para Casa - não "like a home", a de Gable, Clift, e ela própria, mas um sítio que talvez nunca existiu, nem nunca poderia existir para ela.
"What makes you so sad? You're the saddest girl I ever met". As "respostas" surgem ao longo da fita, dadas pelo homem que a conheceu, que viveu com ela, mas que, como ele próprio sugere, acaba por abandoná-la, como tudo na vida.
"We're all dying aren't we. We're not teaching each other what we really know, are we?". Talvez não, talvez nunca, mas de si, a muito devemos o nosso cinema. No fundo, cada um com o seu, e cada um à procura dele, não o vivemos de forma muito diferente. Como Misfits, como Marginais, como MM.

22 março 2005

"The Horror"



"You see, there are two of you. One that kills and one that loves."

Apocalypse Now - um filme de viagem, não só de Benjamin L. Willard, mas do Homem, em plena auto-destruição. Um Homem nihilista, da beira da loucura à loucura ela mesma, de uma visão estratégico-superior de poder divino, necessariamente destruidor desse mesmo Deus.

"They were gonna make me a major for this, and I wasn't even in their fucking army anymore."

Na barreira fina, a mais fina de todas, entre "sanidade" (ou cegueira) e loucura, a fronteira mais bela do Mundo (tão bem filmada neste filme) é uma de desafio, de limites. Os que se acabam por quebrar, que nos colocam sozinhos, sem ninguém para onde nos virar. O Homem só, na sua "loucura", no perigo fatal do absurdo do Universo.

O absurdo é real, a realidade não existe. Mas nós não vemos. Lutamos no Nada, no vazio, o nulo sem regras. Tanto por máscaras, as da guerra, ou sacrifícios, os do ritual.

"You are fighting for the biggest nothing in history".

Talvez por estas e por estes nos encontremos mais, e nos coloquemos melhor no verdadeiro lugar da violência, única estrutura real e permanente em todo o Homem. Aqui o medo não existe. E dá lugar à nossa realidade. É sempre à nossa violência que somos chamados, numa paisagem inteira destruída, numa dança wagneriana de máquinas construídas pelo Homem, num "purple haze" que nos queima a alma. E assim nos tornamos em Fogo.

"The horror. The horror..."

E no nosso surrealismo somos seres verdadeiros, vemos mais que outros, e tanto renascemos para morrer outra vez, numa solidão fatalmente reencontrada. É esta a nossa selva, lugar de misticismo e viagem, para destruir o sonho, na guerra da nossa natureza. No fim de tudo que se institui, no fim de tudo que se sustém. Por de lá de todos os limites.

"This is the End".

21 março 2005

Proposta de discussão - III



No anterior The Royal Tenenbaums, convivemos com excelentes actores a desempenharem personagens meticulosamente planeadas. No entanto, apesar de todas as congratulações que envolveram esse filme, nunca me pareceu que Wes Anderson conseguisse criar os momentos de clímax que são necessários a qualquer película.
Voltando ao presente, mais propriamente a The Life Aquatic with Steve Zissou, é necessário dizer-se que a qualidade dos actores permanece e que minúcia e inteligência não faltam na construção das personagens. Contudo, consegue-se ir muito além disso.
Para os compradores da colecção A Odisseia Submarina, que deliravam com as imagens filmadas pela mão de Cousteau e pela equipa do Calypso, este filme proporcionará, no mínimo, momentos de pura nostalgia. (Bill Murray e Owen Wilson de barrete encarnado a espetarem o polegar para cima? Prodigioso!) Mas, mais do que o sentimento de nostalgia provocado pelo filme, teremos de concordar com o facto de Wes Anderson possuir uma imaginação (lembrem-se das criaturas do mar e do barco com múltiplas funções) e uma sensibilidade que roçam o génio.
Só alguém extraordinariamente susceptível e observador conseguiria criar um cenário de decadência, em que as coisas estão velhas e estragadas e as pessoas estão cansadas e desiludidas (reparem que só Anjelica Huston brilha, sempre impecavelmente vestida e penteada), sem nunca perder o espírito cómico. E o que dizer sobre a presença de um Seu Jorge a cantar temas de David Bowie em português (não me parece que algum luso fique indiferente a isso)?
Mais do que uma obra-prima, cujas qualidades gostamos de admirar, The Life Aquatic with Steve Zissou apresenta um retrato quase neurótico das personagens sem nunca afastar um sorriso sincero da cara dos espectadores. Conseguir isso já seria louvável. Fazê-lo tendo como cenário a imensidão de um mar onde vários géneros cinematográficos se dissolvem é, no mínimo, um marco no actual cinema americano.
Conto convosco!
Todos aqueles que se queixam do facto de este blog só "dizer bem", devem lembrar-se de que o Mise en Abyme foi criado com o propósito de homenagear o melhor da sétima arte.

18 março 2005

Confissão seguida de sugestão



Em primeiro lugar, tenho de confessar que só pertenço ao grupo de admiradores de Bill Murray há cerca de dois anos. Admito que, antes de ver Lost in Translation, as suas interpretações não tinham grande impacto em mim.
Contudo, depois de conhecer o Bob Harris, deu-se uma espécie de clique e aventurei-me numa redescoberta da obra de Bill Murray. Filme a filme, fui consolidando a certeza de que estava na presença de um actor colossal. A propósito, recomendo vivamente o Phil Connors de Groundhog Day, o Bunny Breckinridge de Ed Wood e o Raleigh St. Clair de The Royal Tenenbaums.
Confissões à parte, está na altura de nos focarmos em The Life Aquatic With Steve Zissou. Acabadinho de estrear, não quis perder a oportunidade de o sugerir para que, dentro de pouco tempo, possamos juntar-nos aqui a discutir opiniões. Espero que haja muita gente impaciente por ver Bill Murray, numa versão cómica de Jacques Cousteau, a contracenar com a versatilidade de Cate Blanchett.
Até breve!

11 março 2005

La Dolce Vita



"Vengo anch'io. Ha ragione lei. Sto sbagliando tutto. Stiamo sbagliando tutti."
No filme-escândalo por excelência (condenado por tudo e por todos aquando da sua estreia em Itália há já mais de quarenta anos, assim como em todas as missas...), e tornado rapidamente em filme-culto, Fellini não procura mais do que o sentimento mais comum, humano, mas rico, de uma pureza, ou de uma verdade. Marcello/Mastroianni/Fellini é a personagem deambulante pela selva nocturna de Roma, a velocidade dos carros, a Via Veneto, os flashes à procura de "estrelas", a extravagância e a sensação boémia e quente que sentimos, julgado como doce recheio da vida, as orgias, danças e festas que acabam com o amanhecer, até que o último "desista", ou se adie até mais uma fuga pelas estradas romanas.
E Marcello, como nós, como Fellini, procura a pureza, a inocência - em Sylvia/Anita Ekberg, na Fontana di Trevi, depois de ter procurado leite para o gato branco (e quem não iria), na suposta tranquilidade de Steiner e da sua família (o que mostra a que ponto estamos todos condenados, totalmente inferiores perante uma força terrível acima de nós, uma natureza ruidosa que chega com o medo ao sobre-natural), e em Paola, a jovem que se coloca do outro lado da praia, separada por esse mesmo ruído, gesticulando uma música suave para a angústia de Marcello.
E na casa-castelo para onde todos se dirigem, é o local do confronto com todos os nossos fantasmas, com quem ninguém consegue lidar, brincando todos às máscaras numa procissão já diurna, após outras confissões (e Maddalena/Anouk Aimée) interrompidas no jogo sempre viciante.
"Ma lo sai che sei tutto? You are everything, everything! Sei la madre, la sorella, l'amante, l'amica, l'angelo, il diavolo, la terra, la casa... Ecco che cosa sei: la casa!"
E o Cristo que voa sobre Roma, guiado por essas pobres criaturas, tanto como nós, apenas denuncia tudo aquilo que Marcello quer, e não pode. Pois o que ele quer ou não existe, ou deixou de existir. Mas que para sempre procuraremos.
E outro título não poderia existir, para as três horas mais perfeitas do Cinema, e que hão-de durar numa eternidade bem sonhada por uma beleza, a Beleza do cinema de Fellini. Nada mais quis ele filmar.

06 março 2005

"My darling, my blood"

Mais vale ser directo - Million Dollar Baby não só é uma obra-prima como um dos filmes mais monumentais de toda a História do Cinema. O filme não é sobre a luta, é a luta, ou ainda consegue ultrapassá-la, não sei bem para onde, mas para algo que nos deixa de joelhos e que mata qualquer indiferença, muito mais que artística e simplesmente humana. Porque a simplicidade e a serenidade da filmagem de Eastwood reina nesta obra, e de outra maneira não poderia ser. É o que forma um clássico, um sentimento que parecia já perdido nos filmes de hoje em dia, e pertencente a velhos mestres como John Ford.
E não vale a pena escrever muito mais. Tanto poderia falar dos fantasmas deste filme, do seu mistério, dos toques finais riquíssimos de cada parte de cada história, da incrível sabedoria com que Eastwood lida com as suas personagens, e como estas se apresentam em cada interpretação. Mas deste texto nada poderá aspirar a um lugar ou transmitir melhor os sentimentos de Million Dollar Baby. Tudo é arrebatador neste filme, demasiadamente para os cobardes que saem da sala a meio da projecção - e não chamo aos outros valentes. Grandes filmes como este formam grandes homens, que também carregam inevitavelmente todos os seus pecados. Clint Eastwood é um deles. Talvez o último dos clássicos - este é um elogio que ele merece.

03 março 2005

À vossa espera no clube de vídeo - II


The Elephant Man, nos seus tons sombrios, é um ensaio cauteloso em que a câmara prodigiosa de David Lynch reflecte, de forma ambígua, sobre a ingenuidade e a maldade do ser humano. Assim, o realizador registou, crua e friamente, os comportamentos de todas as personagens com excepção do protagonista que foi filmado de maneira afectuosa e complacente.
A história, aparentemente simples, apresenta-nos um homem transfigurado que vive à mercê dos sentimentos que desperta nas pessoas à sua volta. A dada altura, esse “homem-monstro” conhece um médico (Anthony Hopkins num desempenho perfeito) que decide ajudá-lo a construir uma vida quase normal. Porém, esta é uma película de “quases” na medida em que nada se modifica realmente. O destino trágico do “homem elefante” foi decidido à nascença e só a morte, encarada metaforicamente como uma despedida da dor, permite a tranquilidade sonhada.
Num dos momentos mais comoventes de todo o filme, só comparável ao reencontro entre os dois irmãos de The Straight Story, há uma voz que grita mais alto, num mundo de curiosidades mesquinhas e de desejos cruéis, e que clama “I am not an animal! I am a human being! I am a man!”. Perturbador, não é? Arranjem uma cópia e contem-me a vossa opinião.

01 março 2005

Era uma vez...



Billy Wilder, algures na sua carreira, enunciou dez mandamentos relativos ao cinema - “Os primeiros nove são não maçarás. O décimo é terás o direito à montagem final.” Inspirada nas sábias palavras do realizador, gostaria de prestar homenagem a todos os cineastas que, tal como Billy Wilder, contaram histórias inesquecíveis, prendendo o espectador do princípio ao fim sem nunca o maçar. Antes de começarmos, gostaria de avisar que M. Night Shyamalan não fará parte deste tributo. Pertenço à minoria de pessoas que boceja ao longo das suas películas e que não ousa compará-lo a Alfred Hitchcock.
Para fazer oposição ao capricho recalcado de subestimar o talento de contar histórias como se isso fosse uma tarefa fácil ou inata a todos os cineastas, apontarei alguns nomes e contarei com a vossa ajuda para fazermos uma lista dos maiores contadores de histórias que o cinema já conheceu.
Em primeiro lugar, quero enaltecer Charlie Kaufman pelo génio, imaginação e vigor que trouxe ao cinema (Parabéns pelo Óscar!) e Martin Scorsese pela sábia capacidade de conferir densidade e complexidade psicológica à maioria das suas personagens (como mero exemplo, recordemos o pintor de New York Stories).
Em seguida, gostaria de referir Woody Allen, pela proeza de encher salas com espectadores sôfregos por mais uma história típica; Spike Lee pelo excelente trabalho de realização que apresenta em Summer of Sam e sem o qual nunca ficaríamos presos à narração; Wolfgang Petersen e The NeverEnding Story por ser um dos melhores momentos da nossa infância e, claro está, Steven Spielberg que, apesar dos seus altos e baixos, sempre se demonstrou um exímio contador de histórias.
E vocês? Quais os vossos contadores de histórias preferidos?