Deste filme terá que surgir, inevitavelmente, uma "crítica", pois o tema abordado dificilmente permite outra coisa. No entanto, tem muito que se escreva, tanto pela sua "história", como pelo seu valor.
Filmar os últimos dias de vida de Adolf Hitler é sempre algo de extremamente complicado e, sobretudo, delicado. A tal realidade acrescenta-se o facto de o realizador ser alemão (Oliver Hirschbiegel), e do filme ser, também, um filme para a Alemanha. O que nos é apresentado é um regime já completamente fechado, protegido por uma "aura de loucura", onde os desentendimentos e suicídios se vão sucedendo ao longo que este caminha até ao seu final, concretizado por uma cena documental, que consiste num pequeno excerto de entrevista à que foi uma das testemunhas deste período final do III Reich, a então jovem secretária de Hitler, Traudl Junge. Esta, para além de nos confessar a sua ignorância em relação ao extermínio de judeus em campos "longínquos" de concentração, é representada ao longo do filme como uma personagem algo ingénua, e leal ao ditador, pontuada por momentos desconcertantes de espanto conformista em relação a certos momentos do filme, um deles quando Hitler aponta o dedo à "conspiração" judia responsável por todos os males do mundo. E estamos em 1945.
Assim caminhamos ao longo do filme por este ponto de vista narrativo da jovem Traudl. Algo que, em termos histórico-cinematográficos, não deixa de ser discutível pela importância do "assunto", e com o que se está a lutar em termos colectivo-imaginários, que se concentram no cerne de toda a questão. Desta maneira, ficamos resumidos a uma descrição "realista" dos acontecimentos, de uma construção de uma realidade documental, o que não deixa de ser limitativo quanto à própria qualidade do filme - pois este nunca poderia ser um filme qualquer. Vemos um Hitler carinhoso, a beijar Eva Braun, a brincar com a sua cadela, em trocas de olhares de simpatia com esta mesma secretária, ou a congratular a sua cozinheira pela excelência da sua última refeição. Defende-se aqui um dos que se julga ser um dos aspectos mais importantes do filme - mostrar que a loucura e o mal não se resume aos que já são loucos, mas a todos nós. Um Holocausto, desta forma, poderia ter sido feito por qualquer um.
Mas será isto verdade? Será que o III Reich é assim tão indissociável do que foi o acontecimento mais marcante do século XX? Será a sua origem universal, e não ideológica, uma visão de um povo? Será algo de tão "desculpável", tanto por diálogos, como por estas "imagens"?
O que supostamente choca algumas pessoas afinal é apresentado como algo de verdadeiramente banal. Todos estes momentos são passados aos olhos dos espectadores como qualquer outro no filme, algo escondido por uma suposta máscara documental, por onde tudo parece correr. Mas tal não chega. Não basta mostrar Hitler em alturas de ternura, pois isso nem chega a ser original para um que um filme deve ser, não basta espalhar todo um trauma por um conjunto de frases denunciantes ou, em certos momentos, já atiradas para o ar, nem mascarar toda uma distância (que deveria estar no centro do filme, até pelo que se tenta mostrar) numa secretária que se diz ignorante (e no cinema nunca se deve dizer), ou numa criança ariana que passa de jovem condecorado e orgulho de um Império desfeito, para símbolo de um novo país, que guia a sua bicicleta descoberta nas ruínas, levando consigo a sua desculpabilização, centrada em Junge, algo que acaba por se tornar na tendência do filme.
Assim, o que nos resta ver? Um Goebbels anti-carismático, um "bom-nazi" que acaba morto pelos "fanáticos", um médico-humanista que salva civis, um conjunto de "fiéis" crescentemente preocupados pela "loucura" de Hitler, que parece crescer de dia para dia, e cujo slogan repetitivo, sobretudo já nos últimos dias, parece ser o desejo da morte do povo alemão pela sua fraqueza e derrota final.
No bunker resume-se a queda do regime. Mas não é esta já completamente anterior ao doze dias retratados no ecrã? Não terá esta talvez o seu início já em 1933? Pouco nos deixa à reflexão esta obra, tanto pela sua desconcertante leveza imaginária retratada nestas imagens, como pelo peso brutal da sucessão de assassínios, suicídios e mortes "em directo" em camas de hospital. Será que tudo se pode resumir a isto?
Sai-se da sala não a discutir o filme, mas talvez tudo o que ele não é, que quer ser, mas que também mostra não querer, como uma certa contradição na sua natureza. Somos sim tudo mais depois de Roma Città Apperta e de sobretudo de Germania Anno Zero, obra-prima de Roberto Rossellini. Nesta encontramo-nos muito mais, tanto pela distância, como pela "loucura", a humanidade, a "realidade" que se procura, o mal, ou a verdadeira queda - esta é a do jovem deste último filme, na sua última cena, uma das mais importantes da história do cinema. Aqui nos levamos conta sim de todo o bunker que é a Alemanha Nazi, e não apenas o de Hitler, de todo o trauma que se centra na sua personagem principal, que carrega às suas costas todo o drama da humanidade, e não foge por novos caminhos numa bicicleta, como se nada fosse, de um único suicídio, ainda o da humanidade, e não o de sucessivos militares fardados acima dos "civis". Tudo o que A Queda não é, que apenas a tem no seu título.
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