21 fevereiro 2005

Verdade e Mentira

O teatro e o cinema, enquanto formas de arte que exploram a representação, jogam claramente com a mentira e com a verdade. No entanto, esse "jogo" nunca se realiza como algo de natureza maniqueísta - a verdade não está num extremo e a mentira noutro. Na realidade, verdade e mentira confundem-se, perdem identidade e transformam-se naquilo que vemos em palco ou no grande ecrã.
Lembremo-nos de Tartuffe, obra realizada por F. W. Murnau, que explora a ideia de interrogação sobre a verdade. Há uma governanta desleal, um avô enganado e um neto bem intencionado. Para demonstrar a verdade dos factos ao avô, o jovem neto encena todo um teatro em que se faz passar por projectador de películas. Aqui, de uma forma bastante óbvia, conseguimos perceber a que se refere Rivette quando fala de "meios forçosamente mentirosos" para atingir a verdade.
Pensando em películas mais recentes, nas quais voltamos a encontrar o tema da representação, ocorre-nos All About Eve de Joseph Mankiewicz e Todo sobre mi madre de Pedro Almodóvar. O primeiro desenrola-se no meio teatral onde a mentira é o meio para atingir a fama e os aplausos. Desta forma, temos um objecto cultural que se desenvolve tendo por base vários níveis de representação ou, se quisermos, de mentira. Bette Davis finge ser Margo Channing, Eve Harrington finge ser uma doce e ingénua actriz e nós, numa última instância, fingimos que estamos envolvidos na narração do filme.
Por outro lado, na película espanhola, a mentira não pretende atingir o estrelato. Mais do que isso, a mentira confunde-se e contribui para a autenticidade. Todas as personagens femininas ocultam e disfarçam aspectos da sua vida como forma de se protegerem e de protegerem os outros.
Assim, podemos concluir que o tema da mentira pode ser o tema de um filme. No entanto, numa visão mais alargada, constatamos que não é necessário que o argumento inclua personagens mentirosas para que estejamos na presença da Mentira. O próprio espectáculo de teatro ou de cinema é construído com base nesta. Os actores representam e encarnam uma personalidade que não é a deles, os cenários pretendem parecer algo que não são e, mais propriamente no cinema, as cenas sem sequer são filmadas de forma contínua.
Assim, se aceitarmos a noção de que a mentira e o teatro estão relacionados, somos levados a concordar com a ideia de que todos os filmes são sobre essa relação mesmo que não insiram uma peça de teatro na sua acção e mesmo que todas as personagens falem verdade.
Como forma de conclusão, podemos apenas referir que o teatro, arte que vem desde a Antiguidade Clássica, influenciou a sétima arte mas não impediu que esta se transformasse numa forma artística autónoma, independente e que permitiu e permite novas perspectivas.

2 comentários:

Anónimo disse...

Anteriormente já referi a qualidade de textos deste blog. Mas um facto que me agrada igualmente de sobremaneira é a qualidade da maioria dos comentários.
Contudo, algo me intriga pois verifico que existe apenas um número muito reduzido de comentadores, face ao número de visitas. São praticamente sempre os mesmos a opinar sobre os textos.
Esta situação levanta-me algumas questões!
Será que há pouca massa cinzenta e crítica em Portugal?
Como chegar a um maior número de comentadores? Pelos vistos a qualidade deste blog só por si não é suficiente!
Será que existe receio ou inibição de fazer comentários?
Será que nós portugueses somos preguiçosos e acomodados por natureza?
Será que só a falta de qualidade é que causa polémica?
Será que as pessoas nunca reflectiram sobre as múltiplas questões apresentadas nos textos e nos comentários?
Quem souber, responda. Eu agradeço.

Anónimo disse...

Olá!

Não concordo muito com o que disseste, pois acho que o teatro está muito mais próximo da verdade e muito mais afastado da mentira. Na minha opinião, depende muito daquilo que se entende por verdade; e daquilo que se considera que existe no interior do Homem. Não acredito que haja uma verdade absoluta, mas sim como disseste várias "perspectivas". Por outro lado, não acredito que o ser humano seja uno mas sim múltiplo. Somos marcados por diversas infuências e continuamente ao longo da vida vamos fazendo várias identificações, consciente ou inconscientemente. Sendo assim, o ser humano não é apenas A ou B, mas tem em si mil e uma facetas. (É claro que uns têm mais que outros). Desta maneira, acredito que uma parte daquilo que somos reflecte-se ou projecta-se na criação artística. E, por outro lado, o actor ao representar um papel pode estar a dar vida a um desejo oculto, a uma ambição frustrada, a um pensamento escondido...
tal como o resto das pessoas o faz no seu dia a dia, pois acredito que a vida em sociedade implica que todos usemos máscaras. Assim, se partirmos do pressuposto que o ser humano é múltiplo e não uno, podemos legitimamente concluir que tudo aquilo que ele tem dentro de si, é Verdade e que as diversas facetas da sua personalidade são expressas em palco ou atrás da câmera.