24 fevereiro 2005

Arte em Veneza


Escrever sobre Morte a Venezia de Luchino Visconti é escrever sobre o cinema num dos seus estados mais puros - numa obra socrática sobre a arte, o artista, e o Homem dentro deste, nasce o movimento apaixonadamente subtil de Visconti, envolto num sentimento de riqueza e de pureza raro no cinema. O seu realismo, no detalhe das salas, das roupas, das jóias, na riqueza dos olhares que nos dizem tudo, nos momentos fantásticos de flashback e nas suas paisagens maravilhosas, é algo que acaba por desenvolver um sentimento fortíssimo de paixão na filmagem. Na história de um músico (diferença em relação ao livro) que parece ter perdido toda a sua paixão e sentimento, algo que este condena como deturpador da ciência construtiva artística (o ataque aos sentidos, em favor da "dignidade humana"), cada pormenor único de Visconti acaba por carregar a angústia da personagem, nos seus momentos de fraqueza, nos seus pensamentos, e no seu belo e fatal prazer. É um artista isolado de sentido de vida e de criação, doente de espírito e decadente, fatalmente perdido num deslumbramento eterno juvenil.
Somos também levados pela magnífica música de Mahler (elemento central do filme), ela própria confundindo-se com a respiração do filme - é um veículo perfeito não só para o tom deste, mas para a sua memória e todas as suas implicações internas, acentuando a sua transcendência e sublinhando a sua perfeição.
Após esta obra e os seus fabulosos planos finais, que mais dizer senão a resposta que Visconti parece dar-nos a uma das possíveis questões centrais do seu filme, inserida num dos seus próprios (e naturalmente poucos) diálogos - será a Beleza algo que se pode construir artisticamente, pela paixão, pelo amor a alguém ou a algo, negando a sua condição de pré-existência a qualquer acto de criação? O filme em si é a resposta final, e para nossa satisfação final, tal como para Gustav von Aschenbach, em Veneza, e para Visconti, num filme de perdição.

1 comentário:

Mafalda Azevedo disse...

Imperdível Luchino Visconti em Senso, essa película estrondosa onde a humilhação acaba por dar lugar à morte. Também lá está esse magnífico músico a pairar pelos planos...