06 junho 2005

Margarida Gil em entrevista

Nascida em 1950, na Covilhã, Margarida Gil tem-se dedicado ao cinema como argumentista, produtora, actriz e realizadora. A autora do recém-estreado Adriana continua a defender incansavelmente a singularidade do cinema português.

Mafalda Azevedo – Quando observamos as figuras masculinas em Adriana, apercebemo-nos de que há homossexuais, crianças que substituem homens adultos e uma personagem impotente. Que imagem do Homem é que desejou transmitir aos espectadores?
Margarida Gil – Convém frisar que não tive uma intenção realista. Foi deliberado haver um grande amor e uma enorme atenção à figura masculina e, por isso, há toda aquela busca em que Adriana tenta encontrar alguém com quem se identifique. No entanto, o filme é uma comédia feita de desencontros e de situações fantasistas. Achei mais interessante criar um percurso de aventuras, em que há obstáculos e dificuldades, semelhante àquele por que passam todas as adolescentes. Na realidade, os jovens não acertam logo à primeira. Muitas vezes, é preciso criar situações absurdas para se chegar a uma certa verdade.

M.A. – No plano final, as personagens dispõem-se num celeiro tal como se estivessem num presépio. Podemos considerar que essa simbologia religiosa acompanha todo o filme?
M.G. – Parece-me que há, ao longo do filme, uma ideia de ritual manifestada na viagem, nas mulheres com os cestos do pão, na criada que conta um conto tradicional português e na ideia de Portugal. Mesmo o tom do filme, logo desde o início, é muito ritual. Para além disso, também há manifestações pagãs e uma referência à religiosidade açoreana, através do mito do Espírito Santo, com o qual brinco. No fundo, o meu filme é uma brincadeira e temos de olhar para Adriana como quem olha para uma comédia.
M.A. – Como descreveria a personagem Adriana?
M.G. – Como uma menina demasiado cândida que se confronta de forma inocente com uma realidade muito pouco inocente.
M.A. – Fazendo uma retrospectiva da sua obra enquanto realizadora, que película destacaria?
M.G. – Devo dizer que estou muito tempo sem ver os meus filmes e quando os vejo já não sou a mesma. No entanto, tenho uma relação de relativa felicidade com Adriana. Já o vi muitas vezes e apetece-me sorrir de cada vez que o vejo. Não há aquele constrangimento que sinto com outros filmes que fiz. Talvez por serem mais negros e mais graves. O primeiro [Flores Amargas] é tão louco e estranho que também tenho uma certa afeição por ele.
M.A. – Quais são os seus novos projectos?
M.G. – Neste momento, estou a trabalhar sozinha em dois argumentos e também tenho um projecto intitulado A cama do gato, em parceria com a [escritora] Maria Velho da Costa.
M.A. – A actriz Margarida Gil é diferente da realizadora Margarida Gil?
M.G. – Nunca me senti uma actriz. Como dizia o João César Monteiro, tenho algum jeito para ser actriz cómica. Graças ao meu primeiro filme, as pessoas vêem-me como uma mulher dramática e trágica mas, na verdade, não tenho nada de trágica.
M.A. – Referiu o nome de João César Monteiro. Depois de terem vivido juntos e trabalhado em tantas películas, como é que olha para a obra que ele nos deixou?
M.G. – Como se olha para uma obra singular, sem par. Em Portugal, não há ninguém que tenha deixado um espólio cinematográfico tão pessoal, tão extraordinariamente poético e tão violento. Era um cineasta que tinha muito para dar mas que infelizmente desapareceu.
M.A. – Parece-lhe que um filme como Branca de Neve deve ser interpretado como uma provocação ou como um acto de coragem?
M.G. – O público está muito habituado a controlar tudo e Branca de Neve não é controlável. É um filme corajoso, feito por um homem livre que pagou muito cara a sua liberdade. Toda a obra dele era provocatória, Branca de Neve não o foi especialmente. O problema é que tocou o limite do insuportável porque colidiu com normas muito rígidas.
M.A. – Observando o nosso panorama cinematográfico, de que forma o descreveria?
M.G. – Acho que estamos numa época muito perigosa. Há uma vontade muito grande de acabar com aquilo que distinguiu o cinema português das outras cinematografias. O desejo de normalização aliado à situação de crise financeira e ao desaparecimento de figuras como a do João César Monteiro cria um panorama pouco animador. No entanto, acho que há vozes, profundamente solitárias, por exemplo as de Pedro Costa e Miguel Gomes, que mantêm um espírito de resistência e de luta pela liberdade de expressão no cinema português.
M.A. – Mencionou Miguel Gomes. Qual é a sua opinião sobre o polémico A Cara que Mereces?
M.G. – Gosto muito. É um filme muito secreto mas com um olhar muitíssimo bonito sobre a infância. Contém uma grande humanidade e um inegável talento cinematográfico.
M.A. – Quando falou sobre o panorama cinematográfico em Portugal, utilizou palavras como “crise”. Pode desenvolver essa ideia?
M.G. – Parece-me que a crise se instalou um pouco por todo o lado. A começar nas escolhas dos júris, passando pela maneira como os dinheiros são geridos e acabando numa preocupação com o mercado que não beneficia em nada a continuação do cinema português.
M.A. – De que forma é que as escolhas dos júris contribuem para essa crise?
M.G. – É do conhecimento geral que cabe ao júri decidir que filmes serão feitos e, muitas vezes, esse júri é formado por escolhas tão incompreensíveis que ficamos com a ideia de que o Estado quer acabar com o cinema. Não compreendo que se incluam pessoas da televisão e da distribuição nos júris. As televisões não defendem o cinema e os distribuidores são meros funcionários dos interesses americanos. Vivemos numa altura em que estes júris vivem fascinados por um cinema, supostamente moderno, repleto de imitações mal feitas dos milhares de filmes com pistolas que se fazem lá fora. Se é isso que querem fazer, ao menos que o façam bem!

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