26 junho 2005

Um aparte


“The first Humphrey Bogart movie I saw was The Maltese Falcon. I was 10 years old and I identified immediately with Peter Lorre. The impulse to be a sniveling, effeminate, greasy little weasel appealed to me enormously and, setting my sights on a life of mealymouthed degradation and crime, I rapidly achieved a reputation that caused neighboring parents to appear at my doorstep carrying torches, a large rope and bags of quicklime… I wrote Play it again, Sam to honor Bogart for at least giving me a few months of smooth sailing, and also to get even with a certain girl (or a particular sex that gives me trouble, to tell the truth).“

Woody Allen, “How Bogart Made Me the Superb Lover I Am Today”
Março de 1969

25 junho 2005

I waited my whole life to say it


Em 1942, Michael Curtiz tinha acabado de realizar a história de um triângulo amoroso, constituído por Victor Laszlo, Ilsa Lund Laszlo e Rick Blaine. Estávamos na presença de Casablanca, cuja acção se desenrolava em Dezembro de 1941 e cujo propósito era também o de focar a questão dos refugiados na Segunda Guerra Mundial. Num ambiente de espera desesperante, estes homens e mulheres aguardavam a sua vez de poderem partir para a América (“Waiting, waiting, waiting, I´ll never get out of here. I´ll die in Casablanca.”)
Volvidos 30 anos, o realizador americano Herbert Ross executa Play it again, Sam, tendo por base uma peça de teatro de 1969, escrita por Woody Allen. Nesta película, confrontávamo-nos igualmente com um complicado triângulo amoroso, composto por Dick Christie, Linda Christie e Allan Felix. Observando o título da obra fílmica de 1972, reconhecemos uma das frases mais célebres da história do cinema, frequentemente relacionada com Casablanca, embora nunca seja proferida ao longo deste filme. Os nossos ouvidos apenas captam pedidos como “Play it once, Sam”, “Play it, Sam” e “Sing it, Sam”.
Play it again, Sam conta-nos a história de um homem de 29 anos, chamado Allan Felix, que trabalha como crítico de cinema e vive numa casa atulhada de cartazes, revistas e fotografias de Humphrey Bogart. A par disto, Allan recebe visitas frequentes de Bogart vestido com a indumentária de Rick Blaine, herói romântico de Casablanca.
Os minutos iniciais de Play it again, Sam decorrem no interior de uma sala de cinema, onde encontramos Allan Felix a rever a cena final de Casablanca. Momentos depois, vemo-lo a desfrutar da companhia do seu actor preferido. Humphrey Bogart parece ter acabado de sair da última sequência do clássico de 1942: veste as mesmas roupas e traz o revólver usado no assassinato do alemão. Assim que o ouvimos falar, reconhecemos a sua voz e notamos que se dirige a Allan através da expressão “Kid”, que usava para alcunhar a personagem de Ingrid Bergman. No entanto, este Bogart comporta-se como uma espécie de caricatura de Rick Blaine.
A presença de Humphrey Bogart em Play it again, Sam é um dos aspectos que constituem o processo de reflexividade criado por Woody Allen. Este modo de reflexividade está relacionado com o procedimento fílmico que permite a existência de um objecto encaixado, dentro de uma obra maior, que reproduza detalhes ou acontecimentos desta. De uma forma mais simples, podemos referirmo-nos à temática do cinema dentro do cinema ou, se quisermos, ao processo de mise en abyme. No que diz respeito aos exemplos escolhidos, somos surpreendidos com o facto de ser a obra maior (Play it again, Sam) a reproduzir particularidades de um intertexto preexistente e bastante conhecido (Casablanca). Quer isto dizer que, na maioria dos casos, temos um filme menor, dentro de um filme maior, cuja função é a de reflectir pormenores ou situações da obra maior. No nosso caso, temos o objecto encaixado a ser responsável pela existência do filme em si.
Casablanca, que tem vindo a servir de inspiração a tantos outros filmes como, por exemplo, Gato Preto, Gato Branco de Emir Kusturica e Something's Gotta Give de Nancy Meyers, recebe o seu maior tributo nesta fita de Herbert Ross. Há uma clara intenção de conceber um objecto que sirva de espelho ao grande clássico. Todavia, não se pretende que este “espelho” reproduza um verdadeiro reflexo. O que se ambiciona é oferecer aos espectadores a oportunidade de assistir a uma perspectiva actual, marcada pela década de 70, do grande clássico. Aliás, é o próprio Bogart quem, ao som de “As Time Goes By”, refere “That was great! You really developed yourself a little style.”
Há, por parte de Woody Allen, o desejo de utilizar o seu argumento como forma de reacender e preservar a memória de Casablanca. Para alcançar este objectivo, mune-se de objectos cénicos, de uma personagem-fetiche e do seu conhecimento profundo sobre o filme de 1942. O resultado é evidente: Woody Allen conseguiu glorificar e imortalizar, numa primeira instância, o filme de Michael Curtiz e, numa última instância, a arte cinematográfica.

22 junho 2005

Problemas conjugais no cinema





Estávamos em 1941. Alfred Hitchcock reunia Carole Lombard e Robert Montgomery num filme intitulado Mr. & Mrs. Smith. Passam 64 anos. Doug Liman convida Angelina Jolie e Brad Pitt para interpretarem Mrs. Smith e Mr. Smith. No primeiro, conhecemos um casal envolvido num problema legal que invalida o seu casamento. No segundo, somos apresentados a um par de assassinos que ambiciona matar-se mutuamente.
O original Mr. & Mrs. Smith aposta nas peripécias típicas da screwball comedy, enquanto que o novo ostenta demasiadas sequências de acção que denotam incapacidade técnica. Além disso, é impossível fugir a duas verdades inabaláveis: Doug Liman está a léguas de Hitchcock e a carreira de Brad Pitt encontra-se encalhada numa total falta de versatilidade. Já cansa vê-lo a sorrir e a petiscar em quase todas as cenas de Mr. & Mrs. Smith, Ocean's Eleven, Spy Game ou mesmo Snatch.
À partida, parece que as semelhanças entre estas películas se cingem ao título homónimo e ao facto de serem comédias. No entanto, numa análise atenta, apercebemo-nos de que há mais semelhanças entre elas do que poderíamos supor. Tanto na obra da década de 40 como na recente, subsiste uma crise matrimonial provocada por impaciências constantes. A antiga atracção (recordemos o plano das pernas de Hitchcock e a dança de Doug Liman) deu lugar à monotonia diária. Até que, quando menos se espera, os dois casais são surpreendidos por notícias estrondosas. Em 1941, constata-se que a certidão de casamento não é legal. Na segunda fita, marido e mulher descobrem a verdadeira identidade um do outro.
Depois de tais revelações, segue-se a vontade de reconstruir o casamento. Na película a preto e branco, exibiu-se um marido que não desiste de reconquistar a mulher. Em 2005, opta-se por cenas humorísticas a alternarem com sequências de tensão física entre duas das estrelas mais mediáticas de Hollywood. Ainda que o resultado seja o mesmo em ambas as películas, um tranquilizador final feliz, importa denotar alguns aspectos. Não há grandes arrojos na obra de Doug Liman no sentido em que ver Angelina Jolie aos tiros e aos pontapés não surpreende ninguém. Em contrapartida, no filme de Hitchcock, há um notório ataque ao convencionalismo quando se elege uma senhora como Carole Lombard para bater no marido e evidenciar inúmeras cumplicidades sexuais.
Assim, mais uma vez, temos uma película de Hitchcock a merecer a nossa homenagem. Mr. & Mrs. Smith abdica do suspense, do jogo misterioso com o espectador, e apresenta uma screwball comedy a superar clássicos desse mesmo género, por vezes cansativos e repetitivos, como Bringing Up Baby de Howard Hawks.

20 junho 2005

Bergman e todos nós


Para aqueles que só descobriram Ingmar Bergman depois da estreia comercial de Fanny e Alexandre, a chegada de Saraband representou um acontecimento único e inesquecível. Após tantas idas à Cinemateca para assistir às películas do mestre sueco, eis a recompensa trazida pelo dia 13 de Janeiro deste ano: a possibilidade de fazer parte da atmosfera de ânsia e expectativa que envolve a estreia de um filme de Bergman.
Saídos da sala de cinema, depois de termos testemunhado o reaparecimento de Liv Ullmann e Erland Josephson, somos invadidos por inúmeras recordações. A música ainda se ouve e transporta-nos para a dimensão claustrofóbica de Lágrimas e Suspiros, as rugas parecem ter sido filmadas para nos conduzirem até Morangos Silvestres, a língua sueca remete-nos para todo o imaginário obsessivo de O Silêncio e os olhos de Liv Ulmann levam-nos ao sonho vão da existência de Persona. Mas será que Saraband se limita a estimular as nossas memórias cinematográficas? Certamente que não.
O último filme de Bergman, suposta despedida do mundo do cinema, desenvolve-se em torno da reaproximação de Marianne e Johan. Duas pessoas, marcadas por um mesmo passado, reencontram-se numa casa de campo, cercada por paisagens de inenarrável beleza. Se pensavam que Bergman já nos tinha dito tudo o que havia para dizer, desenganem-se. Assistir a Saraband é entrar num processo de identificação e de diálogo catártico em que o requisito imprescindível é a coragem para encarar a complexidade do ser humano, sem disfarces e sem ingenuidades.
Fixemo-nos na cena em que Johan se encontra no corredor. Quem é este Johan? Poderemos reduzi-lo à etiqueta de mau marido e de pai incompetente? Poderemos descreve-lo unicamente como um homem deslumbrado pela falecida nora e obcecado pela neta? Julgo que ao fazê-lo, cairíamos num lamentável erro. Johan é mais uma daquelas personagens, criadas por Bergman, que demonstra a excepcionalidade do ser humano. Faço minhas as palavras publicadas no suplemento Y, de 14 de Janeiro: Para perceber o Bergman é só preciso já ter sentido uma emoção, já ter amado alguém ou alguma coisa. E ter pensado um pouco sobre isso. (…) O que é espantoso no Bergman, e actualíssimo, é a recusa desse efeito de normalização: cada ser humano é sempre um ser excepcional. E é sempre um ser de desejo.
Cientes de tudo isto, devemos olhar para Saraband como se olha para uma obra-prima. Talvez a habilidade magistral de Ingmar Bergman seja a capacidade de nos envolver nos grandes planos, nos diálogos desconcertantes e no nosso próprio reflexo. Olhando para o ecrã, reconhecemos os nossos defeitos, as nossas fraquezas, os nossos desejos e os nossos ímpetos. Por esse impacto único, devemos agradecer a Ingmar Bergman. Mais do que isso, devemos acreditar que esta ainda não foi a sua última estreia em circuito comercial. Parece-vos impossível que um homem de 86 anos volte a pegar numa câmara? Como diz João Bénard da Costa, Impossível? Não para esse génio de todos os possíveis, chamado Ingmar Bergman.
Na compra do Público de hoje, o jornal dá a oportunidade de adquirir o filme Saraband por menos de 10 euros!

17 junho 2005

Proposta de discussão - V


Amanda Peet


Angelina Jolie


Carole Bouquet


Carrie-Anne Moss


Juliette Binoche


Natalie Portman

Depois de vários pedidos a exigirem uma discussão sobre morenas actuais, aqui estão as "minhas" preferidas. Confesso que algumas não são propriamente actuais mas senti necessidade de as incluir. Ficarei à espera dos vossos comentários!

12 junho 2005

Proposta de discussão - IV

Cameron Diaz
Cate Blanchett
Drew Barrymore
Emmanuelle Béart
Gwyneth Paltrow
Scarlett Johansson
Uma Thurman
E por falar em louras, lembrei-me de que poderíamos discutir sobre as actrizes louras do nosso tempo. Aqui ficam as “minhas”. Não hesitem em escrever sobre as "vossas". Até breve!

11 junho 2005

As Louras de Hitchcock

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No seu cinema perverso, Hitchcock sublinhava a graciosidade e a beleza das suas mulheres, as suas louras. Ou será exactamente o contrário? Como disse Truffaut numa cerimónia de homenagem ao realizador inglês nos Estados Unidos, no seu sotaque francês: "In this country, you love him because he shoots scenes of love like scenes of murder. In my country, we love him because he shoots scenes of murder like scenes of love".
E na subtileza da sua perversidade, "Hitch", para os americanos, ou então "Monsieur Hitchcock" para os franceses, por debaixo de cada vestido glamoroso, de cada penteado apanhado, e de cada olhar gelado, estava um desejo tremendo, um fervor carnal. Para elas como para os homens, que as seguem até ao fim, apesar de (falsas) suspeitas, dominados pelo seu instinto mais primário.
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"They are diamonds. Grab them"; numa noite após Grace Kelly se ter despedido de Cary Grant pela primeira vez, depois de um jantar insuportavelmente seco, e de um beijo totalmente surpreendente e escancarado à porta do seu quarto, e de nesse dia lhe ter perguntado, após uma pequena corrida de carro, o que preferia do seu cesto de almoço - "perna ou peito?".
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Eva-Marie Saint, sempre "à perna" de Cary Grant, como uma espia, ou talvez nem por isso, numa cena pouco própria - é ele quem acende, mas é ela que lhe pega na mão, antes de outra noite no comboio, ao furar um túnel, na última cena mais sexual de Hitchcock.
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Ingrid Bergman, mulher doente, como sempre foi, não pelo veneno que é ingerido, mas por Grant, a quem já não diz nada, e se entrega totalmente, para fugirem ambos, não para longe, mas para se aproximarem ainda mais na loucura, que roda à sua volta, tal como a câmara.
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Loucura também a de Stewart, já obsessiva e egocêntrica, como uma Vertigem, como o cabelo de Novak, o seu objecto, para além da vida, contra toda a morte, um desejo eternamente condenado.
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Tippi Hendren e os pássaros, o Mal que não vem de parte nenhuma, ou de todo o lado, o inexplicável, como o instinto, o da sua cor, do animal e o dela, um trauma por desfazer, na crueldade de olhares, na inconfidência da perversão, na violência da sua violação pelos pássaros (e por nós).
Na verdade, o critério de Hitchcock para a escolha das suas actrizes era simples: "que pareçam senhoras, senhoras em toda a acepção do termo, mas capazes de se tornarem putas na cama". Ou como ele via as "raparigas inglesas" - "com aquele ar de professora, é capaz de estar num táxi consigo e, para sua grande surpresa, atirar-lhe as mãos à braguilha".

09 junho 2005

Uma experiência quase insuportável



Depois do surpreendente Lilja 4-Ever, em que conhecemos uma jovem rapariga apanhada numa rede de prostituição, eis-nos perante A Hole in My Heart. Provando mais uma vez que se sente à vontade nas filmagens em espaços pequenos, Lukas Moodysson transporta-nos para um apartamento mobilado com um sofá imundo e aparelhos de ginástica. Lá dentro, coabitam quatro personagens e uma outra quase fantasmagórica mas constantemente relembrada pelo filho e marido. A sua inexistência, reforçada pelo facto de não haver sequer uma fotografia, torna-a presente na imaginação do espectador. Não será de estranhar que saiamos de A Hole in My Heart com curiosidade acerca do seu aspecto físico e dos seus comportamentos.

No interior da casa, assiste-se ao crescimento de uma trepadeira de ruína e degradação em redor das personagens. Há um adolescente encarcerado por livre vontade num quarto e três pessoas, dois homens e uma mulher, envolvidas na tarefa de conceber um filme pornográfico. Contrariamente a Lilja 4-Ever, em que a prostituição surgia como a temática central, A Hole in My Heart assemelha-se mais a uma obra sobre a decadência humana do que a um ensaio fílmico sobre a pornografia.
Voltando às personagens, é importante frisar que a grande qualidade desta película é a forma como aquelas se relacionam. Ligados por uma extrema necessidade, seja económica ou emocional, estes seres humanos oscilam entre uma proximidade consoladora e uma revolta impune em que é permitida toda a espécie de abusos e insultos.

Quando A Hole in My Heart foi anunciado na programação do INDIE, as expectativas eram altas. Estando longe de ser uma desilusão, esta obra só deixa a desejar no que toca à ambição de chocar a audiência. Ainda que se considere a insuportabilidade de um plano tão legítima como a beleza de outro, não é desculpável que se apresentem cenas de uma cirurgia vaginal com o único objectivo de obrigar o espectador a fechar os olhos. Em vez disso, Lukas Moodysson poderia apostar em planos devastadores como aquele em que vemos a personagem feminina caída na rua. Nesses breves instantes de silêncio e claridade, estão condensadas mais emoções do que em muitas películas etiquetadas como bons filmes.

07 junho 2005

O Amor ao Cinema


Se algum filme mostrasse o amor do seu realizador à arte do cinema, este seria sem dúvida um deles. La Nuit Américaine é a obra de um autor apaixonado, sem se saber exactamente se pela vida, pelo cinema, ou pelas duas coisas. Na tripla ilusão deste filme - o que vemos, o que é filmado, e o que vemos projectado dentro do próprio ecrã, por todo o lado vemos relações de paixão, de dedicação, de conflito ou angústia, mistério ou até comédia, por protagonistas que são pessoas, que fazem o papel de outras personagens, que se dedicam à vida, ao cinema, que nos mostram, inclusivamente, e no caso de Truffaut, também actor (será?), o seu próprio sonho: uma criança que tira de um cinema, na noite escura, as fotografias de exibição de Citizen Kane, e que foge com elas pela rua fora. Este é um momento tocante, não só por compaixão, mas pelo que nos toca a nós. Aliás, como se coloca ao longo de todo o filme, o que será mais importante, a vida, ou o cinema?
"Os filmes são mais harmoniosos que a vida, não há engarrafamentos, não há tempos mortos."
Onde está a fronteira que separa a nossa vida e o nosso cinema? Qual dos dois o mais marcante, fascinante, ou belo? Por este filme, torna-se difícil encontrar uma resposta clara e concreta, embora a conclusão possível seja a de uma inevitável confusão, embora com tendência para a totalidade do último, único meio de podermos alcançar uma certa eternidade. Mas nesta obra singular, as personagens não são apenas eternas pelo papel que desempenham enquanto pessoas da vida quotidiana perante os nossos olhos - são também pelo seu papel perante a câmara do filme do filme, as suas posições em cada plano, as falas adaptadas da vida, toda a dimensão que se obtém pelos jogos ilusórios criados a partir do seu movimento, contínuo e infinito.
O cinema é, então, absoluto, ao contrário da vida, que é provisória. Mesmo na morte de um actor na vida real, este não é apagado do cinema - "it is impossible", diz o produtor inglês.
Pelo cinema superamos, assim, a imperfeição, o aborrecimento, o sofrimento, a dor, mesmo a morte. Conseguimos alcançar uma forma, um lugar, criar sentido, amar e sermos amados, de certa forma, viver, até modificar o que julgamos estar errado (não necessariamente o que não está correcto) - assim assistimos às rushes, à edição e montagem de toda uma obra, o redrobamento mágico de uma vida ou de uma história.
Mas estas personagens apenas sobrevivem assim, tal como o realizador afirma a um dos seus actores, Alphonse - são pessoas que apenas podem viver no cinema, são demasiadamente frágeis para se agarrarem ao real, ao previsível, ao temporário, ao que os desilude.
"Eu deixaria um tipo por um filme, mas nunca deixaria um filme por um tipo."
"Les femmes, sont-elles magiques?". Não tanto como no cinema, ou talvez sim, pois estas fazem parte do nosso, apenas vivem nele para os homens. Para Truffaut, no cinema que é vida, na vida que é cinema, no cinema que é um filme melhor da vida. "Je crois que le cinéma est une amélioration de la vie, parce qu'il est magnifique". Nenhum outro realizador nos mostrou tanto a verdade dessa frase, de forma tão apaixonante. Se Citizen Kane incitou Ferrand/Truffaut a fazê-lo, La Nuit Américaine vale-nos pelas mesmas razões, pela mesma inspiração, a que ele nos quis passar, e pela qual vivemos muito mais, numa das obras mais mágicas do (seu) cinema.

06 junho 2005

Margarida Gil em entrevista

Nascida em 1950, na Covilhã, Margarida Gil tem-se dedicado ao cinema como argumentista, produtora, actriz e realizadora. A autora do recém-estreado Adriana continua a defender incansavelmente a singularidade do cinema português.

Mafalda Azevedo – Quando observamos as figuras masculinas em Adriana, apercebemo-nos de que há homossexuais, crianças que substituem homens adultos e uma personagem impotente. Que imagem do Homem é que desejou transmitir aos espectadores?
Margarida Gil – Convém frisar que não tive uma intenção realista. Foi deliberado haver um grande amor e uma enorme atenção à figura masculina e, por isso, há toda aquela busca em que Adriana tenta encontrar alguém com quem se identifique. No entanto, o filme é uma comédia feita de desencontros e de situações fantasistas. Achei mais interessante criar um percurso de aventuras, em que há obstáculos e dificuldades, semelhante àquele por que passam todas as adolescentes. Na realidade, os jovens não acertam logo à primeira. Muitas vezes, é preciso criar situações absurdas para se chegar a uma certa verdade.

M.A. – No plano final, as personagens dispõem-se num celeiro tal como se estivessem num presépio. Podemos considerar que essa simbologia religiosa acompanha todo o filme?
M.G. – Parece-me que há, ao longo do filme, uma ideia de ritual manifestada na viagem, nas mulheres com os cestos do pão, na criada que conta um conto tradicional português e na ideia de Portugal. Mesmo o tom do filme, logo desde o início, é muito ritual. Para além disso, também há manifestações pagãs e uma referência à religiosidade açoreana, através do mito do Espírito Santo, com o qual brinco. No fundo, o meu filme é uma brincadeira e temos de olhar para Adriana como quem olha para uma comédia.
M.A. – Como descreveria a personagem Adriana?
M.G. – Como uma menina demasiado cândida que se confronta de forma inocente com uma realidade muito pouco inocente.
M.A. – Fazendo uma retrospectiva da sua obra enquanto realizadora, que película destacaria?
M.G. – Devo dizer que estou muito tempo sem ver os meus filmes e quando os vejo já não sou a mesma. No entanto, tenho uma relação de relativa felicidade com Adriana. Já o vi muitas vezes e apetece-me sorrir de cada vez que o vejo. Não há aquele constrangimento que sinto com outros filmes que fiz. Talvez por serem mais negros e mais graves. O primeiro [Flores Amargas] é tão louco e estranho que também tenho uma certa afeição por ele.
M.A. – Quais são os seus novos projectos?
M.G. – Neste momento, estou a trabalhar sozinha em dois argumentos e também tenho um projecto intitulado A cama do gato, em parceria com a [escritora] Maria Velho da Costa.
M.A. – A actriz Margarida Gil é diferente da realizadora Margarida Gil?
M.G. – Nunca me senti uma actriz. Como dizia o João César Monteiro, tenho algum jeito para ser actriz cómica. Graças ao meu primeiro filme, as pessoas vêem-me como uma mulher dramática e trágica mas, na verdade, não tenho nada de trágica.
M.A. – Referiu o nome de João César Monteiro. Depois de terem vivido juntos e trabalhado em tantas películas, como é que olha para a obra que ele nos deixou?
M.G. – Como se olha para uma obra singular, sem par. Em Portugal, não há ninguém que tenha deixado um espólio cinematográfico tão pessoal, tão extraordinariamente poético e tão violento. Era um cineasta que tinha muito para dar mas que infelizmente desapareceu.
M.A. – Parece-lhe que um filme como Branca de Neve deve ser interpretado como uma provocação ou como um acto de coragem?
M.G. – O público está muito habituado a controlar tudo e Branca de Neve não é controlável. É um filme corajoso, feito por um homem livre que pagou muito cara a sua liberdade. Toda a obra dele era provocatória, Branca de Neve não o foi especialmente. O problema é que tocou o limite do insuportável porque colidiu com normas muito rígidas.
M.A. – Observando o nosso panorama cinematográfico, de que forma o descreveria?
M.G. – Acho que estamos numa época muito perigosa. Há uma vontade muito grande de acabar com aquilo que distinguiu o cinema português das outras cinematografias. O desejo de normalização aliado à situação de crise financeira e ao desaparecimento de figuras como a do João César Monteiro cria um panorama pouco animador. No entanto, acho que há vozes, profundamente solitárias, por exemplo as de Pedro Costa e Miguel Gomes, que mantêm um espírito de resistência e de luta pela liberdade de expressão no cinema português.
M.A. – Mencionou Miguel Gomes. Qual é a sua opinião sobre o polémico A Cara que Mereces?
M.G. – Gosto muito. É um filme muito secreto mas com um olhar muitíssimo bonito sobre a infância. Contém uma grande humanidade e um inegável talento cinematográfico.
M.A. – Quando falou sobre o panorama cinematográfico em Portugal, utilizou palavras como “crise”. Pode desenvolver essa ideia?
M.G. – Parece-me que a crise se instalou um pouco por todo o lado. A começar nas escolhas dos júris, passando pela maneira como os dinheiros são geridos e acabando numa preocupação com o mercado que não beneficia em nada a continuação do cinema português.
M.A. – De que forma é que as escolhas dos júris contribuem para essa crise?
M.G. – É do conhecimento geral que cabe ao júri decidir que filmes serão feitos e, muitas vezes, esse júri é formado por escolhas tão incompreensíveis que ficamos com a ideia de que o Estado quer acabar com o cinema. Não compreendo que se incluam pessoas da televisão e da distribuição nos júris. As televisões não defendem o cinema e os distribuidores são meros funcionários dos interesses americanos. Vivemos numa altura em que estes júris vivem fascinados por um cinema, supostamente moderno, repleto de imitações mal feitas dos milhares de filmes com pistolas que se fazem lá fora. Se é isso que querem fazer, ao menos que o façam bem!

01 junho 2005

Rever Ingmar Bergman

CINEMA QUARTETO

Dia 14 - 19h00 / 21h30

SORRISOS DE UMA NOITE DE VERÃO
1955 – Legendas em português




Dia 16 - 19h00 / 21h30

MORANGOS SILVESTRES
1957 – Legendas em português

Atenção cinéfilos!

Já abriu a nova loja dedicada ao culto do cinema!
Chama-se Cinecittá, situa-se na Avenida Sacadura Cabral e está aberta desde o dia 18 de Abril. Cartazes, filmes, relíquias, postais, fotografias, tapetes para o rato...
Não percam esta oportunidade!