02 abril 2007

Jorge Silva Melo



Deambula por cafés e cinemas que já não existem, ressuscitando mitos mortos e esquecidos. Elogia a verdadeira liberdade, aquela que sobressai no Play Time de Jacques Tati e no Terra Bruta de John Ford. Assume-se como discípulo de Raoul Walsh e promete, na rodagem dos seus próprios filmes, seguir o Mestre e filmar a vida dos homens sem Deus, sem moral e sem sentença.
Não poupa repreensões aos críticos de cinema que denomina como sábios doutores da crítica para sempre parados no passado. Com o mesmo regozijo, aplaude João Bénard da Costa, considera-o um modelo a seguir e reconhece-lhe a capacidade de, através da escrita, fazer ver a vida. Recorda a altura em que foi aluno de Mário Dionísio e mostra-se grato por ter aprendido o verdadeiro papel da literatura. Encontra-se nos livros mortos que recorda da adolescência e nas preciosidades descobertas em alfarrabistas.
Define os actores de teatro não apenas pelos papéis que fizeram mas também por aqueles que gostaria que tivessem feito. Recua no tempo e evoca o Teatro Moderno de Lisboa, feito por gente digna, cheia de entusiasmo e de vontade de fazer uma coisa nova. Tal como ele próprio, diríamos nós agora.

Em suma, Jorge Silva Melo, com o olho clínico do observador, a delicadeza do amigo, a fragilidade do ser humano, o devaneio do viajante e a nostalgia da cultura. O mesmo homem que inicia as suas memórias com uma frase de Simone Weil – a nossa vida real é, em mais de três quartos, composta de imaginação e de ficção.
É ele, Jorge Silva Melo, um dos maiores vultos da cultura portuguesa e o autor de Século Passado. Uma obra que é o retrato eficaz de um século e de uma época manchados pelo salazarismo mas coloridos por uma vida cultural transbordante, em que as pessoas do meio intelectual trabalhavam por uma causa comum. Uma obra em que a capacidade de inter-relacionar, de compreender e de interpretar as conexões interdisciplinares e interculturais que pairam à nossa volta é alucinante. O carácter específico de disciplinas como a literatura, o cinema, a música, a pintura, a arquitectura e o teatro perde o seu sentido numa reflexão como esta que as confunde e baralha sem nunca perturbar o leitor. Numa única página, debruçamo-nos sobre a obra de Beethoven, ao mesmo tempo que reflectimos sobre Michel Piccoli e recordamos Van Gogh.

Estou finalmente velho e o que vivi já é tempo de memórias. […] Vivemos e trabalhamos e alteramo-nos e inventamos outras coisas e outras formas – os que conseguem.

9 comentários:

Concha disse...

Este livro é notável!

Duarte Valente disse...

fiquei com alguma curiosidade... quando o avistar irei folheá-lo.

Anónimo disse...

Só para te congratular pela iniciativa e pela vontade de manter este Blog, que está muito bem estruturado.

É preciso gostar de cimena e gostar de escrever sobre cinema.

E tu tens ambas as virtudes.

Parabéns!

a.pinela

Anónimo disse...

Depois de ter lido a entrevista que ele deu no Expresso, na qual disse várias coisas com que me identifiquei inteiramente, fiquei com vontade de ler o livro :o)

Bjs

Hugo disse...

Lá vou ter de arranjar tempo nas 1234 coisas que tenho para fazer para ler isto... :-)

Anónimo disse...

andas sempre muito ocupado, ó alves

Hugo disse...

Experimenta fazer assessoria jurídica ao sector financeiro e, ao mesmo tempo, escrever uma tese de mestrado que já percebes o que estou a dizer :-)

Anónimo disse...

é isso mesmo - não vou experimentar

Mafalda Azevedo disse...

Olá a.pinela!

Agora que a Leonor teve a amabilidade de te identificar, aqui estou para agradecer a simpatia do teu comentário.
Um beijinho,
Mafalda

P.S. Estou sempre disposta a enfrentar um quiz…