19 abril 2005

Uma crítica

Depois de tanta polémica à volta do filme português A Cara que Mereces, e devido a tudo o que já foi escrito sobre ele, sinto a necessidade de escrever neste blog, e segundo a minha perspectiva, pela primeira vez, uma "crítica", se quiserem, ou o que se pode chamar um texto pessoal, sobre a própria obra e toda a discussão que se gerou à volta dela.
Seguindo a linha de raciocínio de certos críticos (nacionais) de vários diários ou suplementos, trata-se de uma obra sem nexo, sentido, razão de ser, presunçosa, restrita a um imaginário exclusivo de um pequeno grupo de amigos, directamente representado no próprio filme.
E começo desde já por discordar. Pouco interessa ao cinema se um filme é feito ou não por um certo número de pessoas que se conhecem todas entre elas há já muito ou pouco tempo. Muitas das vezes que tal acontece nunca se traduz em maus filmes, o mesmo se defende em relação a filmes cujo complexo imaginário se "restringe" à cabeça do realizador. Contra estes pressupostos, nunca teriam existido filmes de Godard, Fellini, Truffaut, ou Woody Allen, entre muitos outros. A Bout de Souffle deve ter sido feito por uma dezena de pessoas, todas amigas, e todas vindas do mesmo grupo intelectual, o dos "Cahiers" (revista que começou por destacar este mesmo filme português). Otto e Mezzo foi, por muito que o seu realizador negasse, uma das obras mais pessoais da história do cinema.
A Cara que Mereces, sem ser uma obra-prima, como estas últimas mencionadas, não deixa de ser um verdadeiro atrevimento ao "estado de crise" do cinema português, tanto discutido, e tanto atacado por todos os lados. Culpam-se artistas, culpam-se ideologias, "esquece-se" o público. No entanto, não se sai das radicalizações dos dois lados do debate - por um lado, pede-se o fim de um cinema de combate pós-25 de Abril, "marginal" e "cínico", como se defende o regresso "total" do cinema ao espectador, já tanto esquecido pelos artistas. Assim se chega ao ridículo já público do novo júri do ICAM, cujas famosas opiniões vão contra qualquer espécie de ideia de cinema, ou de tudo o que ele deveria ser.
Nesta defesa de construção de uma "indústria" cinematográfica, ou de um cinema comercial de marca nacional, chegamos à crítica ao tal cinema "artístico" português, que uns defendem podre, afastado da realidade, ou então merecedor de uma profunda reflexão sobre o seu propósito e modo de "funcionamento". Esquecem-se todos que o cinema é já em si "artístico". O facto de filmar o quer que seja, e colocá-lo num movimento ilusório, por uma projecção, numa sala de cinema, com muitos ou poucos espectadores, provoca imediatamente em si um valor artístico inegável. O espectador, não sendo estúpido, rapidamente se apercebe do seu valor artístico, ou da sua eventual inexistência - por vezes correctamente, outras erradamente. Mas cada um tem o seu cinema (ou não o tem).
No fundo, pouco importa toda esta discussão centrar-se à volta de um só filme, tal como já aconteceu tantas vezes, chega até a ser ridículo. Creio que um dos grandes defeitos que nós temos (e julgo ser demasiado fácil afirmar que é por sermos portugueses), é precisamente a constante necessidade de deitar abaixo tudo o que acaba por parecer algo estranho, "despropositado", "insultuoso", ou apenas incompreensível. A Cara que Mereces pouco tem disso - como escreveu Kathleen Gomes, "é só preciso ter tido infância". É esta a grande sensação com que fico do filme, aliás, todo ele parece estruturado à volta da sua ideia, até ao seu fim ("adeus amigos"). Toda a sua simbologia me parece familiar, e em nada exclusiva a sete ou oito pessoas.
Não defendendo que o filme seja perfeito, parece-me mesmo assim que surge, no cinema português, como portador de uma originalidade muito pouco vista neste nosso pequeno "circuito" nacional. Para além da beleza da sua filmagem, e de qualquer outro pormenor técnico (com destaque para a sua fotografia), a sua estrutura surge muito bem conseguida com tudo o que ela parece conter (e que é muito, mesmo parecendo simples - aliás, as crianças "parecem" sempre criaturas simples). Acredito que certas extensões mais "escusadas" (numa linguagem mais directa) são fruto do facto de se tratar de uma primeira obra, mas sem dúvida interessante, bastante rica, e dotada de uma originalidade muito própria, algo que já faltava ao nosso cinema. Espero por futuras obras de Miguel Gomes e pela exploração do seu universo fílmico, possivelmente partindo da mesma doce originalidade, factor principal que me prendeu ao filme e ao seu equilíbrio certo de ironia e "tragédia". Por aniversários, tesouros escondidos, histórias de piratas, quartos escuros (tanto mistério que se reúne aqui, e quando este acaba, também é assim para a infância, tanto no filme, como na vida), ou outros gags. Até lá, que se façam mais filmes, que é do que precisamos.

5 comentários:

Mafalda Azevedo disse...

Francisco:
Também a mim pouco me importa se A Cara que Mereces é "restrita a um imaginário exclusivo de um pequeno grupo de amigos". Nunca foi isso que esteve em causa.

Como sabes, apoio o cinema português e tento não perder um único filme. Ao contrário de tantos, nunca caí no comportamento usual de "deitar abaixo tudo o que acaba por parecer algo estranho" e não considero que estamos a atravessar um "estado de crise" (sempre gostaria de saber de onde vem a moda de considerar que o nosso cinema está constantemente em crise...).
Contudo, A Cara que Mereces, mesmo que encarada como um atrevimento (e isso já é fazer um grande favor ao realizador), não merece os elogios que lhe fizeste.

Comecemos pelo fim do teu texto. Concordo com a última frase "Até lá, que se façam mais filmes, que é do que precisamos.". Sempre achei que essa é a atitude certa. Mais do que isso, e regressando à ideia de atrevimento, gostei sempre de reais atrevimentos como o de João César Monteiro ao apresentar uma película quase sem imagens a embater em cheio na etimologia da palavra Cinema. Porém, e voltando ao nosso filme (ainda não percebi qual o problema de uma discussão se centrar num único filme), discordo desse argumento, nomeado por ti e pela Kathleen Gomes, em que se refere que só é preciso ter tido infância para perceber A Cara que Mereces. A isso, apetece-me gritar "Poupem-me!", pois tal teoria só me lembra um subterfúgio pseudo-intelectual para defender uma película sem defesa possível. Aliás, esse género de defesa ainda me irrita mais quando penso que há muita gente a "comprar" esse tipo de raciocínio, semelhante a um relativismo idiota, em que tudo é analisável e qualificável.

E o que dizer sobre expressões como "beleza da sua imagem"? Qual beleza? A fotografia não é boa, os enquadramentos são banais, a imagem nem sequer é atractiva...

Para terminar, pois estou farta de escrever sobre este filme, fiquei chocada com a arrogância da frase "uma originalidade muito própria, algo que já faltava ao nosso cinema". Com que então chamamos originalidade a umas quantas imagens sem sentido e sem qualquer força de união? Em vez de perdermos tempo a evocar substantivos abstractos para elogiar um filme medíocre e aborrecido como A Cara que Mereces, devemos olhar para pessoas como Mário Barroso, Ricardo Aibéo e João Canijo. Estes sim, munidos de uma real originalidade e competência, têm investido no cinema português e proporcionado momentos artísticos a todos os espectadores que pagam para ver o nosso cinema.

Mafalda Azevedo disse...

Ora aqui está um desafio original... Sei que o desafio era para o Francisco mas atrevo-me a responder em primeiro lugar. Não admiro minimamente o Luís Delgado e tenho pouca estima pela Kathleen Gomes. Todavia, na minha colecção de recortes, tenho uma entrevista conduzida por ela ao João Bénard da Costa, publicada na PÚBLICA de 2 de Setembro de 2001, que merece vários elogios e todo o nosso respeito.

Mafalda Azevedo disse...

... sempre a ironia ...

Anónimo disse...

"O facto de filmar o quer que seja, e colocá-lo num movimento ilusório de movimento, por uma projecção, numa sala de cinema, com muitos ou poucos espectadores, provoca imediatamente em si um valor artístico inegável."

Francisco, estarás tu realmente convencido disto?! Quererá tal afirmação dizer que qualquer sequência de imagens em movimento é imediata e indubitavelmente classificável como artística? Serão pois os meus videos de criança, ou do Verão passado, ou de uma festa em casa de amigos, se projectados numa sala de cinema, obras de arte? Aplicar-se-á o que defendes a todo e qualquer filme pedante sem tom nem som, desde que reuna os apoios necessários para ser exibido em espaços públicos?

E será que esta transcrição do teu texto se poderá aplicar analogicamente a outras formas de expressão artística? Os meus desenhos, emoldurados e pendurados nas paredes da galeria da minha tia, serão arte??

Penso, sinceramente e com o devido respeito, que ultrapassaste as barreiras do atrevimento e que aterraste no planeta do intelectualismo inconsequente...

Bufas, enche-te de coragem e vai rapidamente ao King. E depois partilha connosco o edge com que saires da sala...

Francisco Valente disse...

Estou inteiramente convencido disso. E ao utilizar a expressão "um valor artístico inegável", refiro-me ao valor do cinema enquanto arte, e nunca em termos qualitativos (se o filme é bom ou mau). Mas para mim, merece ser visto, o que já é bem outra coisa. É essa a particularidade artística do cinema em relação a outras artes, e o que faz com se torne uma também - um movimento ilusório de imagens, uma interacção entre espectador e o que ele vê no ecrã, quer seja prazer, interesse, raiva, ou desgosto. Acredita que os teus vídeos de criança têm valor, porque esse é o teu cinema, que está dentro de ti e que age contigo todos os dias. As tuas memórias funcionam como um passar de imagens perante a tua mente, e também interagem contigo. Recentemente, passou um filme nas nossas salas em que consistia basicamente na vida inteira de uma só pessoa, que decidiu filmá-la desde os 15 anos de idade. Não pude ir ver o filme, mas é sem dúvida uma ideia curiosa, pois julgo que acentua exactamente esse valor do cinema - algo humano, mas com valor metafísico, ou intelectual, o que quer que seja, equivalente à arte. O exemplo de desenhos estarem expostos numa galeria não fazem deles arte, o que faz deles isso é exactamente o facto de terem sido desenhados. Pode não ter qualquer significado para todas as outras pessoas, mas por terem sido desenhados envolveu um processo que se pode perfeitamente analisar intelectualmente. Serem bons ou maus já é outra coisa.
Escrevi o artigo não como uma resposta ao facto das pessoas acharem o filme mau, mas porque em vários diários ou semanários se tem posto em causa não a qualidade do filme, o que é perfeitamente razoável, mas sim a própria necessidade de fazer o filme. Para mim, vale sempre a pena. E quando sai bem, ainda melhor. Por não se gostar do filme, como escreveu João Mário Grilo na Visão, não é caso para por o cinema em causa.