21 dezembro 2006

Boas festas

A quem possa interessar, nasci no princípio da década de 80. As primeiras recordações cinematográficas que tenho não são visuais. São auditivas. Lembro-me nitidamente do meu avô e das coisas extraordinárias que ele dizia como o facto de as pernas da Marlene Dietrich terem estado protegidas por um seguro, o corpo da Gina Lollobrigida merecer uma estátua e o The Great Dictator ser um dos melhores filmes de sempre. Mais tarde, vieram os visionamentos em conjunto. O meu avô numa cadeira e eu deitada no sofá. Recordo-me de ter delirado com a Salome da Rita Hayworth.
Do sofá da sala, passei à cadeira dos cinemas. Todos os domingos, sem excepção, ia ao cinema com a minha irmã. Vá se lá saber porquê, os adultos que nos acompanhavam permitiam que víssemos as maiores monstruosidades. Foi nessa altura que assisti aos Kids do Larry Clark, ao Farinelli e ao Odor da Papaia Verde – talvez o maior fastio da minha infância. Mas, foi também nessa altura que vi o Shadowlands – e o meu fascínio pelo Anthony Hopkins começaria aqui – e o Il Postino – que Philippe Noiret descanse em paz.

Os dias deram lugar às noites e passei de criança a adolescente. O meu avô deixou de ser o meu companheiro ideal e a minha irmã começou a ter menos tempo para cinemas. Chegaram os amigos, as idas ao cinema em grupo e o clube de vídeo. Nesta altura, e que me perdoem todos os cinéfilos, era o City of Angels que me enchia o olho. Basicamente, gostava daquilo que me fazia chorar. Mas também adorava aquilo que me metia medo. Pode dizer-se que andava dividida entre os olhos chorosos da Meg Ryan e os olhos sombrios – que ainda hoje me arrepiam – da Kathy Bates no Misery, da Rebecca De Mornay no The Hand That Rocks the Cradle e do tubarão no Jaws. Filmes prodigiosos!
Daquela fase, ainda me acompanham os thrillers que mencionei e o Flashdance do Adrian Lyne. Digam o que disserem, ninguém me tira a minha Jennifer Beals e ninguém me rouba o prazer de guardar filmes como só meus.

E eis que chego, devagar devagarinho, à altura em que descobri o Todo sobre mi madre. Tinha ido ao cinema com a minha prima que já era uma apreciadora do realizador espanhol. De repente, fez-se uma espécie de clique e pude perceber que a minha relação com o cinema estava a começar. Anos mais tarde, olhando para trás, compreendi que foi exactamente naquele momento que comecei a ser cinema.

Seguiram-se as idas à Cinemateca com o meu amigo cinéfilo. Foi lá que fui apresentada ao Persona. Desencadeava-se então o meu amor pelo Bergman. De um momento para o outro, a minha vida tinha novos intervenientes: o Hitchcock e as divas do meu avô regressavam em força, tornavam-se parte do meu dia, invadiam as paredes do meu quarto. A adolescência passou, comecei a devorar as apreciações do Bénard da Costa, atingi o “estado adulto” e acabei a faculdade onde pude ter cadeiras de cinema.

Nestes últimos dois anos, graças à insistência do meu namorado, tenho aprendido a idolatrar realizadores que considerava demasiadamente masculinos. São eles o Francis Ford Coppola e o Martin Scorsese. Vieram juntar-se a outras obsessões como o Billy Wilder, o Manoel de Oliveira, o Nicholas Ray, o Woody Allen e tantos outros e outras.
E quanto a ódios de estimação? Ora bem. Sou uma especialista nessa matéria: desejo que a Julia Roberts e o Antonio Banderas expludam numa bola de fogo. Mas isto sou eu a exagerar, numa espécie de over-acting pessoal.

(Talvez seja a época natalícia que me leva a estas nostalgias… Seja como for, o objectivo deste texto é o de desejar boas festas e um 2007 em grande a todos os leitores do Mise en Abyme.)

Até qualquer dia.

26 novembro 2006

Procura-se vontade

A novidade
- Anda para aí um bom documentário português a tentar sair da casca. Intitula-se Ainda há pastores? e é realizado por Jorge Pelicano. Descobri-o na semana passada, em plena FNAC Almada.
- Se estão habituados ao trabalho dos documentaristas portugueses Sílvia Firmino, Catarina Mourão, Sérgio Tréfaut, Rita Azevedo Gomes e Miguel Clara Vasconcelos, preparem-se pois este é um documentário diferente de tudo o que já viram. Trata-se de um objecto surpreendente que reflecte sensibilidade mas que também denota um esforçado trabalho de som e de fotografia.
Perplexidade e vontade
- Numa fase como esta, em que o cinema documental é a nova coqueluche dos cinéfilos, não é de esperar que haja espaço para um projecto de qualidade? Pois bem. Ainda há pastores? foi recusado pelo doclisboa e tem tido problemas em arranjar uma sala lisboeta para ser exibido.
- Vamos ficar de braços cruzados ou vamos promover o cinema português? Visitem o site e entrem em contacto com o realizador. Juntos talvez consigamos arranjar a tal sala e exibir o filme em Lisboa.

21 novembro 2006

Dualidades




Esqueçam o Leo ao som da Celine Dion no Titanic. Relembrem o Leonardo de Catch Me If You Can, filme maior de Steven Spielberg. Aplaudam Leonardo DiCaprio e um incrível trabalho de actor em The Departed.

Diz-se por todos os lados mas vou repetir: o último filme de Scorsese é uma obra-prima. Dizem que nos faz viajar até Taxi Driver, Raging Bull, Goodfellas e mesmo Casino. É verdade. Mas, quanto a mim, só pensei nisso depois de sair da sala de cinema. Até lá, mantive-me presa à cadeira. The Departed é um portento de montagem, de manipulação de som, de trabalho interpretativo. The Departed é o filme de um Mestre que sabe o que faz e que, espero, ainda não está cansado de o fazer.

Mas, sejamos justos, The Departed é também um filme de actores. Já mencionei o trabalho de Leonardo DiCaprio a querer encontrar-se, a querer ser alguém mas não é justo que passe ao lado de Matt Damon, de Mark Wahlberg, e de Alec Baldwin (onde andava esse talento?). Os outros, Jack Nicholson e Martin Sheen, são veteranos, capazes de tudo. Seis homens numa viagem até à morte – só dois escapam ao destino e só um alcança o sossego através da vingança.
E mulheres? Como nos grandes filmes de Scorsese, autênticos hinos ao mundo masculino, há sempre uma mulher que encadeia, que seduz, que vicia. Tivemos Cybill Shepherd, Cathy Moriarty e Sharon Stone. Agora temos Vera Farmiga – doce, compreensiva mas também inflexível. Mulher de cabelos e olhos claros, decidida igualmente a encontrar um rumo. No fim de contas, talvez o tenha encontrado na justiça moral.

E o que escrever mais sobre um filme assim? Nada. O filme falará por si.

17 novembro 2006

Há planos assim – X

Flauta Mágica de Ingmar Bergman
Uma ópera filmada e uma homenagem ao público infantil e adulto.

Quem o viu e quem o vê



Romain Duris está a crescer. Devagar, devagarinho como convém aos verdadeiros profissionais. Da minha relação com o actor, destaco três momentos: o jovem quase imberbe, deslumbrado pela liberdade de uma estadia no estrangeiro; o criminoso compassivo que demonstra o quanto vivemos num mundo que está longe de ser maniqueísta e o filho – irmão perturbado pelas nostalgias de uma relação impraticável.

Romain Duris tem 32 anos. Nos últimos quatro anos, poder-se-ia dizer que o actor vindo de França tem invadido as salas de cinema da Europa. E ainda bem que assim é. Melhor ainda é vê-lo lado a lado com Louis Garrel, mais novo do que Duris e tão inolvidável desde o último Bertolucci. Juntos numa espécie de road movie pedestre, intitulado Dans Paris, em que Garrel vagueia por Paris ao mesmo tempo que Duris deambula pelo passado. Viagens que proporcionam aventuras sexuais a um e momentos de exaltação musical a outro, ao som de Kim Wilde.

Mas, antes das viagens, há momentos em que assistimos às discussões de Romain Duris com a namorada. Aí, parece que tudo se diz e que nada fica por dizer, como se assistíssemos à maior prova de frontalidade e de sinceridade entre dois amantes. Mas não. No amor, e isto parece ser um dos pontos fortes de Christophe Honoré, nunca se diz tudo, nunca se resolve tudo e nunca se ganham certezas perenes.

08 novembro 2006

Sorte – II

Ter sorte é estar frente a frente
com o Chico Buarque enquanto este canta

Com tantos filmes
Na minha mente
É natural que toda actriz
Presentemente represente
Muito para mim

01 novembro 2006

Sorte – I

Ter sorte é viver numa época em que posso aplaudir, ao vivo e a cores, o monumental talento e o enorme profissionalismo de
Luis Miguel Cintra.

Filoctetes, de Sófocles

De 19 de Outubro a 26 de Novembro de 2006
Teatro da Cornucópia, Lisboa
3ª a sábado às 21:30 e domingos às 17:00

29 outubro 2006

Filmar a acção de correr

Choque no Doc Lisboa

Por que carga de água é que um festival com a qualidade do Doc Lisboa tem de convidar a Sílvia Alberto para fazer parte do júri?

(Bonito foi quando a bela da Sílvia resolveu dizer, em plena sessão de encerramento, Vou dar o meu melhor para falar inglês.)

28 outubro 2006

Há planos assim – IX

A minha relação com o cinema é egocêntrica. Só gosto verdadeiramente daquilo com que me identifico. Ou porque me faz rir ou porque me leva a reflectir sobre a minha própria existência.
Obrigada a todos os meus amigos por existirem.

23 outubro 2006

22 outubro 2006

A propósito de Little Miss Sunshine…

Certas coisas que contribuem para o facto de adorar gente como o Charlie Kaufman, o Jonathan Dayton, o Jonathan Glazer, o Michel Gondry, o Noah Baumbach, a Sofia Coppola, o Spike Jonze, a Valerie Faris e o Wes Anderson.

- Sempre que me apetece, posso entrar na cabeça do John Malkovich e provar a todos que a Cameron Diaz sabe ser uma grande actriz;

- De cada vez que pretendo achincalhar alguém, vem-me à cabeça que o Charlie Kaufman e o Nicolas Cage já foram a mesma pessoa;

- Quando sinto um certo desânimo em relação à natureza humana, lembro-me dos choques eléctricos por cada talher falhado;

- Durante grande parte da minha vida, fiz figas para acordar com o cabelo azul e viver um eternal sunshine of the spotless mind. Até que aconteceu!

- Passei a olhar para as crianças com um ar desconfiado em relação à sua vida anterior;

- Já acredito que uma viagem num pão de forma pode ajudar a compreender aqueles que me rodeiam;

- Gosto especialmente do elogio aos falhados – a fazer lembrar o Nicholas Ray de outras eras;

- Regozijo-me de, em plena era dos efeitos especiais, haver pessoas que procuram compreender o ser humano;

- Posso sentar-me na sala de cinema e conviver com pessoas (e não com personagens);

- Gosto de enfrentar todas as construções, reais ou irreais, que vou conservando na minha memória desde criança;

- Sabe sempre bem rir às gargalhadas com humor original e inteligente;

- Aplaudo certas cenas finais que fogem de toda a espécie de clichés baratos;

(… a completar …)

13 outubro 2006

Como o cinema é belo

-- A não perder: 50 filmes inesquecíveis --
Aqui!

Não resisti...

Destaque Portugal vale a pena
Eu conheço um país que tem uma das mais baixas taxas de mortalidade de recém-nascidos do mundo, melhor que a média da União Europeia.
Eu conheço um país onde tem sede uma empresa que é líder mundial de tecnologia de transformadores. Mas onde outra é líder mundial na produção de feltros para chapéus.
Eu conheço um país que tem uma empresa que inventa jogos para telemóveis e os vende para mais de meia centena de mercados. E que tem também outra empresa que concebeu um sistema através do qual você pode escolher, pelo seu telemóvel, a sala de cinema onde quer ir, o filme que quer ver e a cadeira onde se quer sentar.
Eu conheço um país que inventou um sistema biométrico de pagamentos nas bombas de gasolina e uma bilha de gás muito leve que já ganhou vários prémios internacionais. E que tem um dos melhores sistemas de Multibanco a nível mundial, onde se fazem operações que não é possível fazer na Alemanha, Inglaterra ou Estados Unidos. Que fez mesmo uma revolução no sistema financeiro e tem as melhores agências bancárias da Europa (três bancos nos cinco primeiros).
Eu conheço um país que está avançadíssimo na investigação da produção de energia através das ondas do mar. E que tem uma empresa que analisa o ADN de plantas e animais e envia os resultados para os clientes de toda a Europa por via informática.
Eu conheço um país que tem um conjunto de empresas que desenvolveram sistemas de gestão inovadores de clientes e de stocks, dirigidos a pequenas e médias empresas.
Eu conheço um país que conta com várias empresas a trabalhar para a NASA ou para outros clientes internacionais com o mesmo grau de exigência. Ou que desenvolveu um sistema muito cómodo de passar nas portagens das auto-estradas. Ou que vai lançar um medicamento anti-epiléptico no mercado mundial. Ou que é líder mundial na produção de rolhas de cortiça. Ou que produz um vinho que “bateu” em duas provas vários dos melhores vinhos espanhóis. E que conta já com um núcleo de várias empresas a trabalhar para a Agência Espacial Europeia. Ou que inventou e desenvolveu o melhor sistema mundial de pagamentos de cartões pré-pagos para telemóveis. E que está a construir ou já construiu um conjunto de projectos hoteleiros de excelente qualidade um pouco por todo o mundo.
O leitor, possivelmente, não reconhece neste País aquele em que vive – Portugal. Mas é verdade. Tudo o que leu acima foi feito por empresas fundadas por portugueses, desenvolvidas por portugueses, dirigidas por portugueses, com sede em Portugal, que funcionam com técnicos e trabalhadores portugueses. Chamam-se, por ordem, Efacec, Fepsa, Ydreams, Mobycomp, GALP, SIBS, BPI, BCP, Totta, BES, CGD, Stab Vida, Altitude Software, Primavera Software, Critical Software, Out Systems, WeDo, Brisa, Bial, Grupo Amorim, Quinta do Monte d’Oiro, Active Space Technologies, Deimos Engenharia, Lusospace, Skysoft, Space Services. E, obviamente, Portugal Telecom Inovação. Mas também os grupos Pestana, Vila Galé, Porto Bay, BES Turismo e Amorim Turismo. E depois há ainda grandes empresas multinacionais instaladas no País, mas dirigidas por portugueses, trabalhando com técnicos portugueses, que há anos e anos obtêm grande sucesso junto das casas mãe, como a Siemens Portugal, Bosch, Vulcano, Alcatel, BP Portugal, McDonalds (que desenvolveu em Portugal um sistema em tempo real que permite saber quantas refeições e de que tipo são vendidas em cada estabelecimento da cadeia norte-americana). É este o País em que também vivemos. É este o País de sucesso que convive com o País estatisticamente sempre na cauda da Europa, sempre com péssimos índices na educação, e com problemas na saúde, no ambiente, etc. Mas nós só falamos do País que está mal. Daquele que não acompanhou o progresso. Do que se atrasou em relação à média europeia. Está na altura de olharmos para o que de muito bom temos feito. De nos orgulharmos disso. De mostrarmos ao mundo os nossos sucessos – e não invariavelmente o que não corre bem, acompanhado por uma fotografia de uma velhinha vestida de preto, puxando pela arreata um burro que, por sua vez, puxa uma carroça cheia de palha. E ao mostrarmos ao mundo os nossos sucessos, não só futebolísticos, colocamo-nos também na situação de levar muitos outros portugueses a tentarem replicar o que de bom se tem feito. Porque, na verdade, se os maus exemplos são imitados, porque não hão-de os bons serem também seguidos?
Nicolau Santos, director – adjunto do jornal Expresso
In Revista Exportar

12 outubro 2006

Para quê verdades?

Os seis minutos mais belos da história do cinema
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Sancho Pança entra num cinema de uma cidade de província. Está à procura de D. Quixote e encontra-o sentado a um canto, de olhos postos no écran. A sala está quase cheia, a galeria – que é uma espécie de varanda – está inteiramente ocupada por crianças barulhentas. Depois de algumas tentativas inúteis de ir ter com D. Quixote, Sancho senta-se contrariado na plateia, junto de uma menina (Dulcineia?) que lhe oferece um chupa-chupa. A projecção começou, é um filme de época, no écran correm cavaleiros armados, a certa altura aparece uma dama em perigo. De repente, D. Quixote levanta-se, desembainha a espada, precipita-se contra o écran e os seus golpes começam a rasgar a tela. No écran ainda se vêem os cavaleiros e a dama, mas o rasgão negro, aberto pela espada de D. Quixote, vai-se alargando cada vez mais, devora implacavelmente as imagens. No fim, do écran já quase nada resta, vê-se apenas a estrutura de madeira que o sustentava. O público, indignado, abandona a sala mas, na galeria, as crianças não param de encorajar fanaticamente D. Quixote. Só a menina da plateia o contempla com ar de censura. Que devemos fazer com as nossas imaginações? Amá-las, acreditar nelas, a tal ponto que temos de as destruir, falsificar (talvez seja este o sentido do cinema de Orson Welles). Mas quando, no fim, elas se revelam ocas, inatingíveis, quando mostram o nada de que são feitas, só então podemos descontar o preço da sua verdade, compreender que Dulcineia – que salvámos – não pode amar-nos.
Giorgio Agamben, Profanações

08 outubro 2006

The Pillow Man

A premissa – Um escritor num regime totalitário é interrogado acerca do conteúdo grotesco dos seus contos e das suas semelhanças com uma série de homicídios infantis que estão a acontecer na sua cidade.

O autor – Martin McDonagh nasceu em 1970, em Londres. Em 2003 escreveu The Pillowman, peça galardoada com o Prémio Lawrence Olivier no ano seguinte.

O encenador – Tiago Guedes nasceu em 1971. Estreou-se na longa-metragem em 2005 com Coisa Ruim. É realizador de inúmeros telediscos e ganhou vários prémios em festivais nacionais e internacionais.

Algumas perguntas – Qual a responsabilidade de um artista pelo seu trabalho? Pode um artista ser culpado pelos sentimentos que o seu trabalho provoca? E se alguém agir segundo esses sentimentos, quem é o responsável afinal?
Os leitores mais atentos aqui do Mise en Abyme decerto se lembrarão de uma proposta de conversa que versava sobre o filme das nossas vidas. Apesar de a utilidade e a finalidade de um bate-boca desses serem sempre discutíveis, a verdade é que os visitantes cá da casa aderiram e houve respostas surpreendentes. Pois bem. Creio que ontem foi a noite para assistir à “peça de teatro da minha vida”.
Não sou uma frequentadora assídua de teatro, daquelas que acompanham todas as peças e conhecem o trabalho de todas as companhias e grupos. No entanto, tento ir frequentemente ao teatro e tenho algumas experiências insubstituíveis. Ainda hoje recordo a expressão do Virgílio Castelo, perdido de amores pela diva, no Encontro com Rita Hayworth do Teatro Aberto. Também revivo, com muita emoção, o Tiestes de Luís Miguel Cintra e a voz do Diogo Dória a ecoar por toda a Cornucópia.
Sempre gostei de enredos perversos, capazes de nos fazer aceitar e até de nos fazer compreender os actos mais violentos. Talvez por isso, tenha gostado tanto de The Pillow Man. Mas há mais. Tive a sorte de ficar na primeira fila, frente a frente com quatro actores colossais e frente a frente com uma encenação como nunca antes tinha visto – não esquecerei aqueles azulejos brancos, assim como não esquecerei a chuva verde.

Lembro-me de ter pensado, depois de ter visto o Coisa Ruim, que estávamos na presença de um homem que parecia nada temer. Esse homem chama-se Tiago Guedes. Com o mesmo à vontade com que realizou uma das mais inquietantes histórias portuguesas, sem precisar de recorrer aos clichés paranóicos de tantos realizadores da nossa praça, envolveu-se agora, sem recear consequências, na encenação de um texto perigoso. Porquê perigoso? Porque talvez ainda haja muita gente que não está preparada para enfrentar a verdade que é exposta por Katurian, todo bondade e frontalidade e, ao mesmo tempo, todo perversidade e brutalidade.
Peças destas são marcos nas nossas vidas. Peças destas fazem-nos ter coragem para observarmos o ser humano de uma outra perspectiva. Em suma, peças destas fazem-nos perceber que vivemos na fronteira entre o bem e o mal, sempre a escorregar para ambos os lados. (E o "meu" Bergman anda aqui tão perto...)

Por isto, sugiro (ordeno!) que vão ao Teatro Maria Matos. (Lembrem-se de que o teatro tem o lado sedutor de ser irrepetível e não percam The Pillow Man.)