10 dezembro 2007

Dar o braço a torcer


Aqui há uns tempos, propus que discutíssemos o talento de Viggo Mortensen. Tinha acabado de sair do A History of Violence e sentia-me ludibriada. Mais especificamente, sentia-me insatisfeita com o filme e com os actores. E, verdade seja escrita, esta sensação manteve-se até há duas semanas, altura em que assisti a Eastern Promises.
Horas depois de ter visto o filme, já longe do cinema e dos outros espectadores, julgo ter compreendido este renovado Cronenberg, menos obcecado por insectos e mais atento à condição humana no que esta tem de corpóreo e de espiritual. Eastern Promises e A History of Violence cruzam-se, complementam-se e dão a conhecer um extraordinário actor chamado Viggo Mortensen. Não sei o que será de Viggo Mortensen se chegar a haver uma separação entre Cronenberg e ele. Nunca antes, e podem escrever o que quiserem, Viggo Mortensen chegou tão longe.
Na sequência de luta, em plena sauna colectiva, Cronenberg relembra-nos de que aquilo que deve definir um cineasta é a sua capacidade de comunicar através de imagens. O verdadeiro cineasta não deve fazer uso das palavras para explicar uma cena. Se as deseja utilizar, então que as use como uma forma de iludir o espectador. A imagem, tal como no cinema mudo, deve ser compreendida por si só. E é isso que acontece nesta película. O branco dos azulejos, o sangue pelo chão, o corpo dilacerado. Não há necessidade de haver uma única palavra para que compreendamos o que está ali em jogo.
Estava a ver Eastern Promises e, sabe-se lá porquê, lembrei-me de uma conversa entre Fernando Lopes e Bénard da Costa a que assisti, talvez há dois meses, no Jardim de Inverno do São Luiz. Naquela tarde, discutia-se emocionadamente sobre o facto de a relação entre a câmara e o actor ser um dos maiores mistérios do cinema. Dito por outras palavras, ambos afirmavam que a relação entre um actor e uma câmara pode ser um caso de amor que não é tecnicamente explicável. E, neste caso, a câmara de Cronenberg está de tal forma apaixonada por Viggo Mortensen que nos deixa quase sem ar, irremediavelmente fascinados por aquele rosto e, como é natural, por aquele corpo. E isto porque o corpo de Viggo Mortensen é ainda mais premente do que ele próprio. É um corpo jovem, atlético, ágil mas é também um corpo cansado, corroído e estigmatizado que nos transmite a finitude daquele ser.
Consta que Viggo Mortensen terá partido sozinho para Moscovo, São Petersburgo e para a região da Sibéria nos Montes Urais, tendo passado semanas a percorrer a zona sem tradutor. Também consta que o actor terá estudado os "gangs" da organização Vory v Zakone, lido livros sobre a cultura das prisões russas e aperfeiçoado o sotaque siberiano da personagem. Nada disto já me espanta, a mim que dei o braço a torcer.

8 comentários:

Anónimo disse...

Agora que já vi o filme só posso confirmar a tua opinião sobre a qualidade da representação de Viggo Mortensen. Mas ao contrário do que te aconteceu, eu já tinha gostado imenso do actor no filme anterior "Uma História de Violência". Também acho que esta nova abordagem (nos dois últimos filmes) que o Cronenberg faz do seu velho tema muito mais interessante ;o)

Anónimo disse...

Adorei-o nos dois filmes do Cronemberg ,mas aonde comecei realmente a gostar dele foi na triologia do "Senhor dos Aneis".Tem uma ternura inerente,mesmo nos papeis mais agressivos.

Anónimo disse...

Concordo absolutamente e gostei dele em ambos os filmes de Cronemberg. A primeira vez que me apaixonei por ele foi na triologia do "Senhor dos Anéis". Tem uma doçura inata.

Unknown disse...

Parabéns pelo texto - certeiro!
E parabéns pelo blog.

VA

C. disse...

Já tinha gostado do senhor no filme anterior de Cronenberg também! Antes disso, "Lord of the Rings" e pouco mais.

Nuno disse...

A primeira vez que me lembro de o ver foi no "Psycho" de Gus Van Sant (1999 acho).

Silvania Tatajuba disse...

O que me fascina nos filmes é exatamente essa capacidade dos diretores comunicarem tudo,apenas em imagens...Estou gostando muito do Cronenberg, no momento...Qto ao Mortensen,só percebi seu talento no filme Crimson Tide do diretor Tony Scott, e olha que ele estava ao lado de grandes feras..rs..
Aguardo a estréia aqui no Brazil de Eastern Promisses..
Parabéns pelo blog!

Anónimo disse...

Uma História de Violência é, sem dúvida, o melhor filme que vi nos últimos cinco anos. Por gostar tanto de cinema, há muito que deixei de viver os filmes: limito-me a visioná-los, por mais eficazes que sejam. O cinema, sobretudo o americano, estagnou completamente em meia dúzia de fórmulas de sucesso, mas "Uma História de Violência" foi diferente. É, afinal, um grande western, como há muito não se via.

Antes deste, só recordo American Psycho, como um bilhete de cinema que valeu a realmente a pena.

Provavelmente não sou um verdadeiro entusiasta de cinema, mas apenas gosto de alguns filmes. E é por isso que continuo a a frequentar as salas em busca da repetição de alguns grandes momentos de satisfação, porém em vão.

Alexandre Pinela