"Não sou um anticomunista primário. Sou um anticomunista universitário. É com esta franqueza, despida das refinadas subtilezas ininteligíveis tão ao gosto da Corte de qualquer época, que Raul Miguel Rosado Fernandes denuncia os que desbaratam inimputavelmente o dinheiro de todos, auxiliados pelo serviço do jornalismo e da justiça, com o seu mercado aberto para as secretarias do poder. Memórias de um rústico erudito é, neste sentido, um retrato realista da alma pouco recomendável da política. Não haja dúvidas de que o seu autor se situa à direita. Mas o retrato que apresenta dificilmente será rejeitado por gente inconformada, descomprometida e séria.
É difícil prender na rigidez duma classificação este conservador liberal que distingue como exemplar o labor de alguns colegas parlamentares comunistas; que se correspondeu com Jorge de Sena ou com José Rodrigues Miguéis; que destrói numa penada essa espécie de claques de futebol que são as Juventudes Partidárias – tudo isto num estilo claro e saboroso, num tom muitas vezes ridente e aqui e ali não limpo de algumas culpas.
A sua não é uma história pessoal de infortúnios, embora tenha descido aos infernos na cilada em que Abril de 74 cedo se tornou; e a eloquência vernacular, admite, foi apurada ali, no curso forte das circunstâncias. Mas não só. Nascido bem, a família garantiu-lhe uma educação invulgar; o seu espírito fez o resto. Apurou a inteligência no estudo dos antigos; Doutor em Filologia Clássica pela Universidade de Lisboa, aí ascendeu a Professor Catedrático ainda com 40 anos de idade (1974) e aí foi Reitor (entre 1979 e 1983). Infatigável na aprendizagem, domina as principais línguas estrangeiras, convive com intelectuais e políticos da mais variada proveniência. Homem de cultura cita com a mesma facilidade Damião de Goes, Henrik Ibsen ou Drummond de Andrade. Tem o instinto da graça, que cultiva sem parcimónia, com a mesma irreverência com que confessa nunca estar imune aos encantos do sexo oposto. Mas nem esses inevitáveis arrebatamentos, nem as suas proverbiais cóleras, parecem falar em seu desabono. Na verdade, só se pronuncia com conhecimento de causa.
E tem-no. Parlamentar na Europa e na Assembleia da República (para a qual se fez eleger, pelo CDS-PP, no distrito de Setúbal, «onde até os gatos são vermelhos»), pode aí comprovar quotidianamente aquilo de que já suspeitava, pois sempre foi homem de acção política. É ao seu reflectido e interveniente desassombro, e ao dos seus companheiros de luta, que se deve em grande parte o que é hoje o associativismo agrícola do país, e bem mais do que isso: a manifestação popular que, em 24 de Novembro de 1975, dividia Portugal ao meio, ostensivamente recusando-se a ser mais uma província soviética. Professor catedrático, Reitor, analisa retrospectivamente o meio universitário, também ele minado por uma competitividade tantas vezes torpe. Gestor agrícola, amante da Natureza, fundador da CAP, conhece os problemas da agricultura portuguesa como poucos, e no campo passa por «engenheiro».
A que se deve a nossa histórica inadaptabilidade às formas superiores de civilização? É uma das perguntas condutoras desta narrativa, que arranca pessoal, com a deliciosa descrição de uma família de grandes senhores da terra alentejanos, espelho de uma parcela pequeníssima do país, e de uma época, o início do século XX.
Aos 72 anos, Raul Miguel Rosado Fernandes diz-se desenganado com o incerto caminho do mundo. Mas o que as suas Memórias também atestam, escritas de cabeça (escritas de cor), é a vontade de não desistir por parte de quem, apesar de tudo, sempre se desdobrou em desvelos para com o país natal. Este testemunho, nítida contenda com o país institucional, é o arremesso do punho (o mesmo punho que inaugurou historicamente o confronto físico no hemiciclo do Parlamento Europeu) que insiste em provar que, na política, nem tudo é glosa do mesmo mote. Que crie, portanto, algum alvoroço."
É difícil prender na rigidez duma classificação este conservador liberal que distingue como exemplar o labor de alguns colegas parlamentares comunistas; que se correspondeu com Jorge de Sena ou com José Rodrigues Miguéis; que destrói numa penada essa espécie de claques de futebol que são as Juventudes Partidárias – tudo isto num estilo claro e saboroso, num tom muitas vezes ridente e aqui e ali não limpo de algumas culpas.
A sua não é uma história pessoal de infortúnios, embora tenha descido aos infernos na cilada em que Abril de 74 cedo se tornou; e a eloquência vernacular, admite, foi apurada ali, no curso forte das circunstâncias. Mas não só. Nascido bem, a família garantiu-lhe uma educação invulgar; o seu espírito fez o resto. Apurou a inteligência no estudo dos antigos; Doutor em Filologia Clássica pela Universidade de Lisboa, aí ascendeu a Professor Catedrático ainda com 40 anos de idade (1974) e aí foi Reitor (entre 1979 e 1983). Infatigável na aprendizagem, domina as principais línguas estrangeiras, convive com intelectuais e políticos da mais variada proveniência. Homem de cultura cita com a mesma facilidade Damião de Goes, Henrik Ibsen ou Drummond de Andrade. Tem o instinto da graça, que cultiva sem parcimónia, com a mesma irreverência com que confessa nunca estar imune aos encantos do sexo oposto. Mas nem esses inevitáveis arrebatamentos, nem as suas proverbiais cóleras, parecem falar em seu desabono. Na verdade, só se pronuncia com conhecimento de causa.
E tem-no. Parlamentar na Europa e na Assembleia da República (para a qual se fez eleger, pelo CDS-PP, no distrito de Setúbal, «onde até os gatos são vermelhos»), pode aí comprovar quotidianamente aquilo de que já suspeitava, pois sempre foi homem de acção política. É ao seu reflectido e interveniente desassombro, e ao dos seus companheiros de luta, que se deve em grande parte o que é hoje o associativismo agrícola do país, e bem mais do que isso: a manifestação popular que, em 24 de Novembro de 1975, dividia Portugal ao meio, ostensivamente recusando-se a ser mais uma província soviética. Professor catedrático, Reitor, analisa retrospectivamente o meio universitário, também ele minado por uma competitividade tantas vezes torpe. Gestor agrícola, amante da Natureza, fundador da CAP, conhece os problemas da agricultura portuguesa como poucos, e no campo passa por «engenheiro».
A que se deve a nossa histórica inadaptabilidade às formas superiores de civilização? É uma das perguntas condutoras desta narrativa, que arranca pessoal, com a deliciosa descrição de uma família de grandes senhores da terra alentejanos, espelho de uma parcela pequeníssima do país, e de uma época, o início do século XX.
Aos 72 anos, Raul Miguel Rosado Fernandes diz-se desenganado com o incerto caminho do mundo. Mas o que as suas Memórias também atestam, escritas de cabeça (escritas de cor), é a vontade de não desistir por parte de quem, apesar de tudo, sempre se desdobrou em desvelos para com o país natal. Este testemunho, nítida contenda com o país institucional, é o arremesso do punho (o mesmo punho que inaugurou historicamente o confronto físico no hemiciclo do Parlamento Europeu) que insiste em provar que, na política, nem tudo é glosa do mesmo mote. Que crie, portanto, algum alvoroço."
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2 comentários:
Eis um dos académicos que mais admiro. Quer pelo seu humor verdadeiramente corrosivo, mas sobretudo pela inteligência finissima que possui. Acho que já descobri uma das minhas próximas leituras...
Nice work, regards
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