“Por isso, The Purple Rose of Cairo talvez seja a mais bela homenagem que o cinema faz ao poder de sedução das salas de cinema. “
Manuel Cintra Ferreira, Folhas da Cinemateca
Pensar em A Rosa Púrpura do Cairo é compreender que a ilusão nunca antes foi assim filmada. Nem mesmo por François Truffaut quando assinou La Nuit Américaine (1973) e nem pelo próprio Woody Allen quando escreveu o argumento de Play it Again, Sam (1972).
Mas comecemos pelo princípio. Se antes pensávamos que a eterna recordação de Mia Farrow seria relembrá-la nas mãos de John Cassavetes em Rosemary's Baby (1968), agora percebemos que nos enganámos por completo. Esta Cecilia, sem possessões demoníacas, ocupará para sempre a nossa memória.
Aquilo que parece ser um elogio à ingenuidade e à inocência, como aliás foi feito recentemente por Mike Leigh em Vera Drake, transforma-se num convite à ilusão. Não nos deixemos enganar! Esta Cecilia é tão pouco ingénua como qualquer um de nós. Ainda que a vejamos a beijar vários homens e a mentir ao marido, desculpamo-la devido à sua vida miserável. Ou não. Na verdade, perdoamo-la porque Woody Allen nos consegue iludir. Esta Cecilia não é uma mulher ingénua. É um ser humano que desespera por uma vida mais gratificante e que anseia por agarrar a felicidade.
(Se há alguém profundamente ingénuo neste filme, esse alguém é Tom Baxter, explorador e poeta. E mesmo ele é resultado da ilusão pois não é um ser humano.)
De desconstrução em desconstrução, personagens que abandonam o ecrã, actores que fingem ser personagens e personagens que fingem ser humanos, acompanhamos A Rosa Púrpura do Cairo, iludidos pela sensação de que vemos um filme cómico. (Talvez o mais triste dos filmes cómicos se pensarmos que estamos em plena crise económica, rodeados de personagens pobres e descontentes.)
E no fim Top Hat, Fred Astaire e Ginger Rogers. Já tínhamos pensado neles quando uma das personagens começa a sapatear desenfreadamente. Vê-los não é uma surpresa mas funciona como um consolo, como uma forma de esperança. Para Cecilia e para nós.
(Depois de o filme acabar, acompanha-nos a certeza de que o cliché está correcto: nada é aquilo que parece.)