03 maio 2011

Uma revelação

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Das horas que diluímos no sangue
eu fiz tão pouco, mas tu compuseste canções fáceis,
dessas que se escutam quando se sai do banho,
e se algumas hão-de morrer na MTV,
outras vão aparecer no genérico de telenovelas
e mais tarde serão imortalizadas entre os teus greatest hits.
Vais dar uma série de entrevistas e falar de tudo
menos de mim. Eu vou acabar os meus dias a destilar ódios
e a dizer mal de ti a todos os que me quiserem ouvir.
Vou seguir as estrelas menos apagadas
deste último lugar e mudar de cor tantas vezes
até embranquecer de desgosto.
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Por estes dias faço questão de arrastar os pés
nos pulsos da solidão, acendo-me contra
o teu conto de fadas, as tuas empregadas domésticas
mal pagas, saltando à corda no teu jardim. Não suporto
essa alegria arrumada aos dias, a agitação
de deuses que vêm por aí e te cobrem a pele,
os relvados, abrindo toalhas, fazendo piqueniques
e tricotando ilusões ao ar livre. Não sabes
como detesto todos os cisnes tranquilos
na superfície do teu lago – agarro-os um por um à socapa
e trago-os até à cozinha onde primeiro lhes puxo as penas,
degolando-os a seguir.
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Numa hora a mão direita deita-se e delira,
apertando contra a página uma sombra que
silenciosamente tentava escapar-se. Na hora seguinte
arranco uma costela, vejo-a transformar-se nesse belo
monstro inspirado em ti, os dois olhos como pedras
atiradas ao escuro e esse teu fascínio
com coisas que me cansei de procurar.
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Puta de geração esta em que nasci!
Acostumei-me a tocar-te no ecrã e a envelhecer
de repente. Abro a mão esquerda e largo
um guloso beija-flor no teu pescoço, para que a sua fome
te fure durante o sono e acordes gasta, mole
e sem o sorriso absurdo que pões em frente ao espelho.
Estou cada vez mais só, mais seco, mais bruto.
Começas a cantar e eu ensurdeço. Descobri que nunca
tive voz para os teus musicais, que o máximo que sei
é aumentar o som e dar um ritmo violento ao meu choro,
saindo debaixo do teu refrão
solto como um saxofone endiabrado.
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Sento-me à noite na mesa onde tu tomas o pequeno-almoço
e ao contrário dos teus exercícios para aclarar a garganta,
sofro de uma tosse suja de pequenas vertigens, nada digno
de nota. Tenho apenas esta cabeça aguda
como um semáforo a abrir e a fechar-se
ao fundo da tua rua. Anoto a matrícula dos carros
que passam, procuro um padrão,
algum indício ou promessa, qualquer corpo
sem rotina ou simplesmente um movimento fora do normal.
Mas não acontece nada. Não vem mais ninguém. Traíste-nos a todos.
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Diogo Vaz Pinto, Nervo

1 comentário:

Anónimo disse...

Ainda não ia a meio e já sabia de quem era o poema. Tinhas razão! Nabur