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O último poema de amor
Pergunto-me se tens lá voltado e se ficas,
como eu, a olhar quieta as ossadas,
a carcaça do nosso sonho, largado
no quintal da casa abandonada
onde deixámos a virgindade. Na altura
ainda íamos muito ao cinema, roubávamos
as melhores linhas aos actores, e de todos
aqueles finais felizes lá fomos
fazendo a nossa triste história de amor.
Agora uma boa parte do que dissemos
já o temos visto por aí
junto a outros sentimentos encadernados,
à venda em qualquer quiosque por bem menos
do que conseguimos gastar em surpresas,
aniversários e dias dos namorados.
Mas os poemas de amor são como são, baratos,
universalmente acessíveis e descartáveis
como os próprios corações. A não ser os melhores,
os ocultos. Esses ladram aos estranhos em defesa
do território, estendendo um ombro
muito para além do tempo, onde enfim até a morte
vem chorar.
Nós havemos de nos cruzar por aí
em ruas mal iluminadas, de braços cruzados e olhares
sem saída, a sofrermos entre conhecidos
esse riso dos perdidos
como se pedíssemos ainda para nos acharem.
Eu e tu, cada um saberá fingir à sua maneira
um jeito de não ter visto o outro.
Porque o amor só veio em visita, deixando o lugar vazio
para vir uma imaginação arruaceira, com restos de ketchup
nos beiços, abandalhar-nos o romantismo.
E é esta a que agora vem beber alegremente
do meu copo, cambaleando alcoolizada
e berrando o que lhe apetece. Alguns riem-se,
outros dizem que diluída, mais aguada talvez,
correria melhor nas suas veias líricas.
Mimando uma ficção agradável, muitos
têm chegado bem mais longe.
Eu prefiro contar a vida pelos dedos
e perdê-los. Assim te peço que, fazendo destas frases
o que quiseres, por favor no fim só não digas
que ainda me entendes.
Diogo Vaz Pinto
Retirado daqui.
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