21 julho 2008

Procura-se uma identidade

I just don't know what I'm supposed to be.
Charlotte, Lost in Translation (2003)
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Jane Campion controla-nos de maneira tão habilidosa que começamos a ver Holy Smoke como quem está a assistir a uma comédia de costumes, baseada em mais uma família problemática.
O engano persiste, sequência após sequência, de tal forma que, quando conhecemos a personagem de Harvey Keitel, convencemo-nos de que estamos a ser espectadores de uma espécie de duplicação do “Homem – SOS” de Pulp Fiction.

Kate Winslet é Ruth Barron, uma jovem mulher procurando por si mesma, pela sua essência, por aquilo que deve ser, que tem de ser, que quer ser. E, por entre dúvidas, a certeza de que é lasciva, de que quer amar e desejar; de que quer ser amada e desejada.
No episódio dos documentários, naquela mesma sequência em que a família está toda presente e há uma ovelha a servir de mesa para umas tigelas com pipocas, Ruth, depois de perceber que o pretenso guru se envolveu com a cunhada, levanta-se e refugia-se na casa de banho. Não porque a mensagem dos vídeos a tenha atingido, mas sim porque, mais uma vez, foi rejeitada. Todo o amor que, supostamente, existe dentro dela, provocado pelo culto hindu, não serve de nada quando ela se sente vazia e sem interesse. O guru preferiu a pirosa que se pavoneia de madeixas nos caracóis e calções minúsculos. O guru, tal como Ruth sabia, escolheu a “little Barbie doll”. O orgulho de Ruth está ferido. Ela é, afinal, a mulher rejeitada que põe tudo em causa, porque, na verdade, de nada serve. E será mesmo assim? Não, não é.
Ruth estava enganada e não previu que se iria transformar no único guru do filme. Um guru sexual, chamemos-lhe assim, que subjuga o homem até ao limite. Até ao ponto de este mesmo homem, habitualmente de calças de ganga e botas de cowboy, surgir no deserto de vestido encarnado, suplicando Be my bride, I love you.
Holy Smoke vive de sobressaltos, de mal entendidos, de seres primários e de seres sombrios. No meio do nada, algures na Austrália, uma mulher e um homem jogam com as consciências um do outro, indo até ao limite da perversidade, da angústia e do prazer. Agarrados a desejos que não compreendem, anseiam por atingir alguma certeza sobre si próprios.
(E não estaremos muito longe da verdade se compararmos estas almas ingénuas e sedentas de afecto a outras duas almas: Charlotte e Bob Harris.)

3 comentários:

Miguel Marujo disse...

Gostei muito de ler... E (parece-me) que finalmente encontrei alguém, tu, que gostou do filme, coisa que pensava já impossível, dado o apedrejamento geral que a crítica reservou para o filme na estreia. Ah, e há Kate Winslet. ;)

Mafalda Azevedo disse...

Parece-te e bem, porque gostei imenso do filme.
Para mim, talvez já não exista Kate Winslet... Acredito na existência de Clementine Kruczynski, Sarah Pierce, Ruth Barron, Sylvia Llewelyn Davies e, até, de Iris Simpkins.

Para ti, especialmente, deixo um link penoso:

http://katewinslet-celebfan.blogspot.com/2008/03/kate-winslet-anglo-saxon-attitudes-1992.html

Haja humor! ;)

spring disse...

Jane Campion assina aqui mais um grande filme, que infelizmente foi muito pouco visto.
cumprimentos cinéfilos
Rui Luis Lima