.
. Ontem à tarde, o Michael Cunningham esteve na FNAC Chiado para um encontro com os seus leitores. E foi, de facto, um momento inolvidável.
Há instantes destes em que, de repente, voltamos a ser aquela aluna da Faculdade de Letras que descobriu As Horas, graças à colecção do Público, e que depois devorou o Sangue do Meu Sangue e Uma Casa no Fim do Mundo. Retratos do nosso quotidiano, testemunhos indispensáveis das relações humanas, das decepções e descobertas que nos vão acompanhando ao longo da vida.
Quando a adaptação de As Horas estreou por cá, realizado pelo incompreendido Stephen Daldry, lembro-me bem de ter ficado destroçada com os desempenhos de Ed Harris, absolutamente extraordinário no seu suicídio teatral, e de Julianne Moore, tão angustiada, sem conseguir respirar, presa numa redoma claustrofóbica de que não conseguia sair. Ontem à tarde, naquele encontro informal, Michael Cunningham, com o seu à-vontade americano, qual turista bonacheirão, revelou que a personagem de Julianne Moore tinha sido inspirada na sua própria mãe que morreu de cancro antes de o filme estar pronto. E isto, claro, foi o suficiente para viajar até Evening, esse melodrama tão bem interpretado pelas enormes Vanessa Redgrave, Meryl Streep, Glenn Close, Toni Collette e Claire Danes que conta a história, escrita também por Cunningham, de uma moribunda que, prostrada, vai recordando os dias em que viveu o amor da sua vida, cinquenta anos antes.
No meio da pequena multidão que se juntou ontem para ouvir o romancista galardoado com um Pulitzer e com um PEN/Faulkner, houve alguém que se destacou ao perguntar o porquê de tantas histórias acerca de famílias destruídas, de cânones abalados e de sofredores perenes. A resposta foi ainda melhor: “porque sim, há coisas que não se controlam e mesmo que quisesse escrever histórias divertidas e cómicas não o conseguiria.”. E ainda bem que não. A obra de Michael Cunningham funciona assim como um porto de salvação e lê-lo faz-nos sentir mais acompanhados, mais saudáveis. O seu escrutínio, ou se preferirmos o seu dissecar, das relações humanas, tão perceptível nos diálogos do último Ao Cair da Noite, leva-nos a ter muita curiosidade quanto à vida íntima do autor. E ontem, foi deveras esclarecedor saber que o romancista leva uma vida rotineira e metódica, com horários estabelecidos e nunca desrespeitados, e que defende, simultaneamente, que o verdadeiro escritor consegue escrever sobre qualquer sítio onde nunca tenha estado, ou sobre qualquer actividade mesmo que nunca a tenha praticado. Só há uma coisa sobre a qual o verdadeiro escritor não consegue escrever se nunca a tiver experimentado: a emoção, o sentimento.
E assim, de pergunta em pergunta, de confissão em confissão, Michael Cunningham declarou-se ainda um enorme admirador da Madame Bovary de Flaubert. “Thank you Gustave”, disse ele. E o público poderia ter respondido, em uníssono, “Thank you Michael”.